A China que eu vi / 2

Sim, eu estava na China, mas na parte da China construída para tornar mais fácil e atraente a vida dos estrangeiros.

É impossível explicar Shenzhen (sul da China, fronteira com Hong Kong) sem falar um pouco da história recente, que levou aquela região a ser o que é.

Um lugar que em 40 anos passou de 30 mil habitantes para cerca de 13 milhões, recebeu multidões de fora. De outras regiões da China e do exterior. Em Shenzhen é muito difícil encontrar quem tenha nascido lá.

Há 40 anos, o governo chinês (Deng Xiaoping à frente) resolveu enfrentar o problema da fuga para Hong Kong criando, do lado de cá da fronteira, uma coisa parecida com uma metrópole cosmopolita e moderna, que fizesse os chineses pensarem duas vezes antes de emigrar. Sim, também reforçou o controle das fronteiras. Mas não só.

Os distritos da cidade e o bairro onde passei um mês, em 2019.

Em 1980 foi no bairro Shekou, no distrito Nanshan, dentro de Shenzhen, que o governo criou a primeira Zona Econômica Especial. E começaram a desenvolver condições para atrair empresas multinacionais e grandes empresas chinesas. Bairros residenciais, centros comerciais, áreas de lazer, escolas internacionais, infraestrutura (portos, aeroportos, rodovias, ferrovias) para baratear a logística, universidades e incubadoras. Enfim, fizeram, com competência, o dever de casa para criar um ambiente atrativo.

Assim, quando cheguei ali, em julho de 2019, para visitar os netos, a filha e o genro, encontrei um lugar que, fora o idioma e seus caracteres estranhos, pouca coisa tinha de diferente do que encontrara poucos dias antes, ao passar por Paris, ou mesmo ao circular por Florianópolis, no Brasil. Mas tudo muito organizado e limpinho.

O “Sea World” e Shekou, vistos do terraço do centro cultural.

Agora, cá pra nós, acho que exageraram um pouco. Quer um exemplo trivial? Gosto de comprar camisetas com estampas locais. Não consegui achar uma camiseta com uma bonita ilustração que não tivesse palavras em inglês. As raríssimas que tinham caracteres chineses, eram feiosas ou com logotipo de empresa “ocidental” (digamos, pepsi) e o nome em chinês.

Shekou quer dizer “a boca da cobra”, Porque fica na “boca” (na foz) do rio Pérola, que deságua no mar do sul da China. É basicamente um bairro residencial, com grandes áreas desenvolvidas sobre aterros feitos na baía de Shenzhen. Sua principal área de lazer e consumo é chamada Sea World (mundo marítimo), acredito, até com uma certa ironia.

Sabe aquela história, que se conta em Florianópolis, de que “antigamente o mar vinha até aqui e dali pra cima era tudo mato”? Posentão, em Shekou dá pra contar a mesma coisa. E levaram isso ao pé da letra.

O mar vinha até aqui…

Um parque, no Sea World, marca até onde vinha, há poucas décadas, o mar. Os sobrados que ficavam à beira mar, na praia, ainda estão lá. À frente deles, um parque gramado. E, num local, uma “ilha” de areia, para lembrar que o mar vinha até ali. Tem até uma placa marcando o nível do mar. E hoje, para chegar até o mar, é preciso passar por prédios de apartamento, pelo banco China Merchants, atravessar uma avenida e passar todo o centro Cultural de Shekou. E, no mar, não tem praia, é uma marina.

Letreiro pra marcar o nível do mar. Quando aqui ainda tinha mar. Mais ou menos como aquela “maquete” do Miramar, em Florianópolis.
Aí era a praia. À esquerda, o aterro. O prédio de apartamentos foi construído onde há pouco tempo era o mar.

Num outro capítulo vou comentar essa história de praia ou não praia e a relação que os chineses (as chinesas, principalmente), têm com o sol. E por que suspeito que a falta de praia não seja um grande problema para elas.

Bom, mas voltando ao assunto de hoje: no comércio de Shenzhen se encontra todo tipo de produto. As principais marcas mundiais estão lá. Claro, com embalagens e rótulos, na maioria dos casos, em chinês. Mas são aqueles produtos que os estrangeiros se acostumaram a encontrar mundo afora. E tem os importados. Todos.

Batatinha frita sabor “lula grelhada”. Achei fofo.
O supermercado “boutique”, em foto de divulgação, porque esqueci de fotografar.
Sorvete com sal marinho. Uma espécie de modinha mundial. Que também tem no Sea World. Claro.

Toda essa oferta de importados, claro, tem um preço. Uma das redes de supermercados desenvolveu um ramo especialmente para atender os gostos dos “expatriados” (trabalhadores estrangeiros que vivem ali, com suas famílias): o Olé é um, como direi, “mercado boutique” (pra fugir do desgastado “gourmet”). E seus preços são visivelmente mais altos do que outros mercados. Mas é conveniente, próximo, fácil de chegar. Eu ia a pé, fazer as comprinhas de última hora.

Sem querer assustar ninguém, preciso contar que Shenzhen tem o terceiro custo de vida mais caro da China. Só “perde” para Beijing (Pequim) e Shanghai.

Os pés das galinhas, ao que parece, são muito importantes.
Flores, raízes, folhas para fazer chá. Tem de um tudo.
O painel que indica se os agrotóxicos encontrados nos vegetais estão dentro das normas do governo. Na tabela tem o nome do produto e do produtor, com o resultado da análise, que é feita periodicamente.

Redes como o Walmart também estão em Shezhen. São grandes supermercados como aqueles que encontramos nos Estados Unidos, no Brasil, na Europa. Poucas diferenças. A oferta de galinhas inteiras, abatidas há pouco, com pés e cabeça, por exemplo. Ou os brotos de flores, nos balcões de chás. O botão de rosa produz um chá muito apreciado.

Arroz e mais arroz, em sacas ou saquinhos. Difícil é encontrar um que não fique papa…

Não poderiam faltar, claro, o que em algumas regiões do Brasil chamam de “atacarejos” (como o Fort, em Santa Catarina). Também sem grandes diferenças. Exceto, naturalmente, o enorme espaço reservado ao arroz, vendido até em sacas de 60 quilos e em todas as espécies e tipos imagináveis. E as gôndolas igualmente imensas com todos os tipos e embalagens de óleo para cozinhar. É mais fácil achar galões e embalagens enormes, do que os nossos raquíticos litrinhos.

Milho, girassol, oliva, soja… latão, latinha, garrafão, garrafinha…

Na área de pescados dos supermercados chamam a atenção os aquários com os animais vivos. Não é uma exclusividade chinesa, mas surpreende brasileiros como eu, que embora prefiram peixes que não tenham sido congelados, não encontra, nos mercados daqui, o peixe (ou o crustáceo) vivo.

Lagostas vivas. O preço é de cerca de R$ 56 o quilo.

Comprar o bicho vivo é fácil: pega a redinha, “pesca” o que quiser, na quantidade que quiser, coloca na sacola, pesa, paga e vai embora. O grande problema (pra mim, pelo menos), é o que vem depois. Matar e limpar pode ser tranquilo para quem fez isso a vida inteira (e usa todas as partes, como cabeça, rabo, patas, ovas, miúdos, etc). Eu passo.

Lá dentro tem lanchonete com as famosas almôndegas suecas. Como em qualquer loja Ikea ao redor do mundo.

Na primeira vez a gente fica meio supreso de ver tantas marcas conhecidas. A sueca Ikea, também está lá. A Decathlon, está lá. Mas, se prestarmos atenção, muito do que esses comércios vendem é feito na China. Levaram para lá apenas sua expertise de oferecer os produtos, mas esses continuam sendo “locais”.

O “comunismo” chinês e seus templos de consumo.

Esse ambiente atraente para manufaturas industriais e empresas de todo tipo (hoje cerca de 50% do movimento econômico de Shezhen é do setor de serviços) faz com que todas as principais marcas de eletrônicos e produtos inovadores tenham sede ou filiais em Shenzhen. Pense numa marca, ela provavelmente tem, no mínimo, um escritório ali, para gerenciar a fabricação de algum produto numa das várias fábricas da região.

A gigantesca Foxconn (taiwanesa que ficou famosa por fabricar o iPhone e outros produtos da Apple) tem uma “cidade Foxconn” em Shenzhen, no bairro Longhua, o “Science Technology Park”. Ali estão 15 fábricas, onde trabalham cerca de 300 mil pessoas e uma estrutura completa de cidade, com canal próprio de TV, hospital, escolas, etc.

Huawey, ZTE, Lenovo, Amazon, IBM, Dell, Philips, Apple, Xiaomi, Toshiba, Google, Sony, Olympus, Alcatel, Harrys, Oracle, Epson são algumas das marcas que têm fornecedores na região e participam, com variados níveis de envolvimento, dessa zona de desenvolvimento industrial. Viram? “Todo mundo” está em Shenzhen.

Ao lado da bandeirinha brasileira está escrito, em inglês: “Bem vindo à Latina, bem vindo ao Brasil”. E não é a única churrascaria do Sea World.
Uma cervejaria alemã em Shekou. Legítima.
Área de pedestres do Sea World, com calçadas imitando ondas. De manhã, vazio, porque nada, na cidade, abre ou começa a funcionar antes das 10 horas.

É pra atender esse milhões de “expatriados” que o comércio local oferece tanta variedade. Para que se sintam em casa. Quando se trata de bares e restaurantes, então, a coisa não é diferente. Churrascaria “brasileira” (onde ninguém entende português) e restaurantes italianos, franceses, gregos, japoneses, coreanos e até chineses de outras regiões (Shenzhen, no Cantão, tem culinária cantonesa). E cervejarias alemãs legítimas, com cerveja produzida no local. E garçonetes chinesas vestidas como as garçonetes da Oktoberfest… de Munique.

Numa das fachadas do centro cultural de Shekou, a foice e o martelo lembram que o partido comunista chinês dirige o país há 70 anos.

Mas, se é fácil encontrar o que se procura para comprar, beber ou comer (tem até sites especializados em indicar onde comprar importados), não é tão fácil navegar na internet. Os firewall do governo bloqueiam o Google, o facebook, o whatsapp e as lojas de aplicativos. Uma saída, para estrangeiros, era habilitar um VPN (um truque que engana o firewall, dizendo que estás em outro país). Mas desde 2017 isso é ilegal. Mesmo assim, muita gente usa.

Há alternativas chinesas para todos os aplicativos “ocidentais”. Em vez de Uber, a gente chama o Didi, em vez do Google, tem o Baidu, em vez do Whatsapp, o WeChat e, para comprar online, PandaBoo substitui a Amazon. E entrega no dia seguinte. Se o Google Maps não funciona direito por lá, curiosamente o Apple Maps funciona razoavelmente (tem acordo com fornecedor chinês). Quem se hospeda no Hilton de Shekou tem internet de Hong Kong (que é igual à nossa, tudo liberado). Algumas empresas colocam, no acordo para se instalar na cidade, uma internet liberada. Mas o cidadão comum e os trabalhadores, nas suas residências, têm que conviver com esse controle (ou arriscar a fazer um gato VPN, porque lá, como cá, sempre tem quem dê um jeitinho, por uns trocados).

Então tá. Voltaremos em breve, neste mesmo canal, com mais algumas anotações sobre a China que eu vi.

“I love Shekou”. Imitando o “I love New York”. Brega por brega, taí um selfie. Até a próxima.

PS: a foto grande, que abre o post, é de uma latinha de Coca Cola Zero. Achei bem interessante a forma como adaptaram o desenho inconfundível do logo para os caracteres chineses. Mesmo sem saber ler, a gente identifica a semelhança, pelos traços do acabamento.

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Cesar Valente Escrito por:

Jornalista e designer gráfico catarinense, manezinho, setentão. Ex uma porção de coisas, mas sempre inventando moda: a mais nova é o mestrado em Jornalismo na UFSC.