No meu tempo…

A revolução que tivemos a oportunidade de viver na produção gráfica foi espetacular. Passamos da idade da pedra lascada para a estação espacial em menos de 50 anos. E pensar que no começo a gente se virava com o lápis, a régua, a calculadora, a foto em película, o paste-up, o fotolito, a máquina de escrever…

O Gastão Cassel, veterano jornalista de múltiplos talentos acaba de publicar um livro em que compartilha um pouco da sua experiência. Ele dividiu o relato em duas partes. Na segunda, ele conta o que tem utilizado, dentre os softwares livres ou grátis, para realizar seu trabalho profissional, sem comprometer a qualidade e sem precisar recorrer aos programas famosos, mas insuportavelmente caros, como os da Adobe (Photoshop, InDesign, etc) e da Microsoft (Word, Excel, etc) para obter resultados satisfatórios.

Capa do livro do Gastão Cassel

O livro “Softwares livres para jornalistas e profissionais de comunicação” pode ser baixado gratuitamente neste link.

Mas é na primeira parte que está o conteúdo, a meu ver, mais relevante (ok, ok, a segunda parte é útil para todos e a primeira talvez seja mais interessante apenas pra quem começou nessa trilha quando o mar vinha até aqui e daqui pra cima era tudo mato). Ele conta, resumidamente, como caiu nessa vida e que tipo de ferramentas e obstáculos encontrou no começo do caminho. Me identifiquei com aquelas angústias porque também estava por ali, abrindo caminho no matagal com um facão nem sempre afiado.

Estamos falando da segunda metade da década de 1980 e começo da década seguinte. Importante mencionar que, embora a ditadura militar (ou cívico-militar, como alguns preferem) tenha terminado oficialmente em 1985, a famigerada “reserva de mercado da informática” subsistiu até 1991. E essa trolha foi importante atrasador e complicador pra quem estava começando a aprender a lidar com os computadores e, dentro deles com o “desktop publishing” (a gráfica em cima da mesa).

Quem idealizou a tal reserva de mercado parece que esperava que as empresas brasileiras, protegidas da presença das empresas internacionais (principalmente norte-americanas) floresceriam, desenvolveriam produtos originais e cresceriam no grande mercado interno brasileiro. Claro que, na prática, a realidade foi outra; as empresas pararam de tentar desenvolver alguma coisa e passaram a simplesmente, por meio de engenharia reversa, criar clones do que já existia no mercado internacional e a gente não podia importar legalmente.

O primeiro “computador” que tivemos em casa foi um TK-85, da Microdigital, clone do Sinclair ZX81, que comprei em 1984: era um pequeno teclado com processador, que precisava ser ligado numa TV e a gente programava, em basic, o que queria que ele fizesse. Era divertido e meus filhos, quando pequenos, tiveram ali um primeiro contato com a informática e, principalmente, com a possibilidade de programar um computador para resolver problemas, mover figurinhas, fazer joguinhos.

Eu mostrando o antigo computador TK-85
Ainda tenho o velho TK-85, uma relíquia do século passado. A foto foi feita hoje, 3 de março de 2024, pela Lúcia.

Na época a diagramação (o desenho das páginas de jornais e revistas) era feita usando tabelas, régua de picas (a medida padrão para colunas, derivada da polegada: 12 picas = 1 polegada) e calculadora. Era preciso descobrir quantos toques (ou caracteres) tinha a matéria (datilografada em folhas de papel que a gente chamava de laudas) e fazer contas para saber que espaço, depois de composta tipograficamente, ocuparia na página impressa. Aproveitei que estava aprendendo basic e fiz um pequeno programa para o TK-85 que simplificava e automatizava um pouco essa rotina. Pronto, tava começando a mergulhar na fusão de arte gráfica com informática, que nunca mais parou de evoluir. O mais difícil: não dava pra ver enquanto se desenhava como ficaria o resultado. Isso de WYSIWYG (what you see is what you get: o que você vê – na tela – é o que você terá) veio depois. Na fase analógica a gente usava a experiência (e os erros anteriores) pra ir definindo o produto.

Ilustração com calculadora e anotações sobre os cálculos do tamanho de um texto.
A foto mostra os cálculos que se precisava fazer para descobrir o espaço que um texto ocuparia na página, em determinada largura de coluna e corpo de texto, para poder desenhar no diagrama como seria a página. Foto tirada do livro “Studio secrets for the graphic artist”, de Jack Buchan.

O Gastão toca numa questão que também me angustiava: a dificuldade de se obter, legalmente, com nota fiscal e tudo, computadores e programas. Eu tinha uma pequena empresa (CV Editora Ltda.) e, cedeéfe, queria tudo bem certinho, nos mínimos detalhes. No caso do hardware o máximo que consegui foi uma empresa de Curitiba que vendia computador com nota fiscal, mas era evidentemente um frankenstein montado com componentes paraguaios. Os sistemas operacionais e demais programas estavam “incluídos” quando se comprava o computador. Há quem diga que a popularização da pirataria de software foi também uma consequencia da reserva de mercado.

Numa das vezes que retornei ao Curso de Jornalismo da UFSC (sou aquele idiota da anedota que pediu demissão duas vezes de um emprego federal estável a que tinha acessado por concurso e depois de velho se lamentava pela minúscula aposentadoria que recebia do INSS), o professor Finco me mostrou a salinha que eu ocuparia e ali já estava, com um reluzente monitor de fósforo verde, um PC-XT Taurus (sim, a fabricante de armas, durante a reserva, também montava computadores). No computador, um programa que ninguém sabia como funcionava e que eu deveria investigar pra ver se tinha utilidade: era o Ventura Publisher, da Xerox. O primeiro grande programa de editoração eletrônica. Ainda rodando sob o DOS, sistema operacional da Microsoft, usava um negócio chamado GEM Graphical Environment, que lhe dava uma interface gráfica ainda rudimentar.

Minha relação com o Ventura foi sempre muito apaixonada. Era um programa muito completo e que resolvia todos os problemas da editoração. Não à toa os programas que vieram depois sempre, de uma forma ou de outra, usavam (aperfeiçoando, mas nem sempre) recursos básicos do Ventura.

Mais ou menos nessa época ao passar por Miami, nos Estados Unidos, visitei uma loja de informática (uma festa, porque aqui a gente vivia na seca, com a tal reserva de mercado) e, entre tantos deslumbramentos, encontrei a nova versão do Ventura (3.0) e um sistema operacional com interface gráfica, o Windows. Comprei. E nessa compra descobri uma coisa muito interessante: além dos disquetes com o programa, vinha um livro enorme, com instruções detalhadas, coisa inimaginável de se obter num mundo de cópias piratas. Se a gente lembrar que na época a internet era movida a lenha e não tinha Google nem Youtube com tutoriais e informações sobre como as coisas funcionam, tem-se uma ideia de como esse livro era importante.

A partir daí, sempre que possível, procurava adquirir o software original. Foi assim quando surgiu o canadense Corel Draw. O primeiro que comprei vinha com uma fita vhs onde o programa era apresentado em vídeo. Ali aprendi, por exemplo, a pronúncia correta do nome do programa (aqui no Brasil chamavam e acho que ainda chamam, de Córel e a moça do video dizia que era Corél). E além do livro com instruções, tinha livro com amostras das centenas fontes e de clipart que estavam também nos discos de instalação, como brindes. Quando a Corel comprou o Ventura Publisher da Xerox lançou, na versão 4.1 do programa, um pacote semelhante, com fontes e ilustrações. A partir daí, por inúmero$ motivos, comecei a reduzir a compra de programas originais e embarquei na canoa dos programas “informais” e, claro também em busca dos códigos livres ou gratuitos. Coisa que a segunda parte do livro do Gastão trata com muita propriedade.

Dois CDs, um do Corel Draw, outro do Ventura Publisher.
Depois dos disquetes, a coisa se modernizou: e os programas chegavam em CDs (ainda não eram DVDs). Esses discos aí são do Corel 5 (de 1995) e do Ventura 4.1 (de 1993).

No ofício de diagramar minha trajetória, tal e qual a do Gastão, começou analógica, passou pelo Page Maker, que era da Aldus e depois foi comprado pela Adobe e virou InDesign. Fiquei uns 15 anos com o InDesign e aí fiz um desvio que sempre pensei fazer: quando o Ventura ainda era o dono do pedaço: o principal concorrente (e adotado nos maiores jornais e revistas) era o Quark-XPress, que nunca tinha usado. Já neste século, aproveitando uma fase muito interessante do Quark-XPress (durante a gestão do Matthias Günther como diretor global), com grandes aperfeiçoamentos e preço bom (com uma licença perpétua, sem assinatura), comprei e comecei a usar pela primeira vez. Lembrava o Ventura, com suas caixas de texto. E fomos felizes até que mudanças na direção da empresa fizeram a relação com os usuários azedar, modificando a política de updates e upgrades e caminhando para o programa de assinaturas.

O passo seguinte me levou em 2022 à estrada (asfaltada, bem diferente das trilhas do século passado) onde estou até agora, o conjunto de softwares Affinity: Publisher, Designer e Photo. Não são grátis, mas não têm assinatura e o preço é bem acessível. E tem uma integração muito útil dos três programas. Ao editar uma página (no Publisher), posso editar a foto (no Photo) sem ter que abrir outro programa, ou criar ou editar uma imagem vetorial (no Designer), também sem sair do Publisher. Mas isso é conversa para outra hora.

Voltando ao livro do Gastão: notei que ele não navegou pelos programas de criação e edição de PDF (que substituam o Acrobat Pro, da Adobe), como o online I Love PDF, ou a parte grátis do Sejda. Avaliar as ferramentas disponíveis nessa área é importante porque o PDF é, cada vez mais, onipresente pela sua versatilidade. Seria um bom acréscimo para a segunda edição.

Já que estamos na senda do “no meu tempo” permitam-me fazer um comentário adicional. Aqueles PCs montados com peças contrabandeadas foram desaparecendo aos poucos, à medida em que os efeitos da reserva de mercado foram se dissipando e fabricantes começaram a colocar no mercado produtos prontos e a oferta de computadores de boa qualidade aumentou. Ainda era possível personalizar e montar um computador, mas aí com peças importadas legalmente.

A certa altura da vida profissional fiz a transição dos PCs com Windows para a Apple. Não cabe agora examinar detalhes (nem a motivação ou o custo) dessa decisão, mas trouxe o assunto, ainda inspirado pelo que o Gastão fala no livro, para lembrar que os computadores da Apple trazem, sem custo adicional, programas muito úteis. Por exemplo: I-Movie para edição de videos, Garage Band, para edição de audios, Keynote, para apresentações e Numbers, para planilhas.

Acabei me estendendo. Mas isso só mostra que boa provocação o Gastão fez com o seu livro grátis sobre software livre.

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Cesar Valente Escrito por:

Jornalista e designer gráfico catarinense, manezinho, setentão. Ex uma porção de coisas, mas sempre inventando moda: a mais nova é o mestrado em Jornalismo na UFSC.