O Jornalismo e o buraco da rua

É possível fazer jornalismo no instagram?

Ou: instagram é jornalismo?

Vamos direto ao assunto. A rua Desembargador Arno Hoeschl, em Florianópolis, foi recapeada não faz muito tempo.. Fizeram alguns ajustes na drenagem fluvial, na rede de esgoto e colocaram asfalto novo. Poucos meses se passaram. Bem poucos. E uma daquelas “bocas de visita” (manholes), com uma tampa de metal circular, começou a ceder.

Não iremos aqui ao fundo do buraco. O objetivo é apenas, usando um buraco como exemplo, tentar mostrar o buraco em que jornalistas se metem quando passam a acreditar que fotinhas de buracos no instagram podem substituir o jornalismo.

A imagem de maio de 2024, do Google Street View, mostra os preparativos para o recapeamento.
A esquina da Des. Arno Hoeschl com a rua Madalena Barbi, antes do recapeamento.
Cresce o buraco no asfalto novo. Alguém teve o cuidado de sinalizar.

O buraco no asfalto novo, os carros desviando, o cone improvisado, tudo era muito instagramável. E simples: uma foto, no telefone, e a distribuição da imagem. Tem um buraco na Arno Hoeschl. Não é novidade, porque Florianópolis, governada por um prefeito fascinado pelo tik-tok, tem inúmeros buracos nas ruas.

Dali a poucos meses, bem poucos, alguém da prefeitura fez um remendo no buraco e o trânsito voltou a fluir sem precisar desviar. Mas foi um conserto, como direi, cosmético. Pouco tempo depois, bem pouco, voltou a ceder e desta vez abriu uma cratera maior.

A trama se adensa, com o crescimento do buraco. Certamente ampliado para descobrir a causa da coisa.

Melhores fotos, mais impressionantes. Ainda mais quando alguém (da prefeitura?) resolve cavar ainda mais, para ver onde estava o malfeito. Alguém, no primeiro recapeamento, fez um serviço mal feito e agora era preciso refaze-lo. Para que dure pelo menos mais alguns meses.

E O JORNALISMO?

Pois é, tudo, até aqui, foi instagramável. Qualquer pessoa, com telefone e conexão com a internet, poderia dar essas informações (com a sempre preciosa ajuda do Google). O buraco, o congestionamento, as obras, tudo o que estava acontecendo ali à luz do sol e agravado com a chuva. São informações interessantes, atuais, mas isso é jornalismo?

O que um jornalista faria, nesse caso? Ou, para usar o jargão profissional, com essa “pauta”? Pauta é o cardápio diante do qual o jornalista decide se quer fazer aquela refeição.

Jornalismo não é tão fácil quanto tirar uma foto e postar no instagram com meia dúzia de linhas xingando o prefeito. Ou elogiando. E é caro. Porque precisa do tempo de serviço de um ou mais profissionais, de deslocamentos, de idas e vindas entre um chá de cadeira e outro. E é normal, faz parte do jogo, encontrar quem não queira dar as informações. E fique zangado por alguém ter “vazado” informações que, apesar de públicas, porque envolvem administração pública e dinheiro público, acostumaram-se a mante-las “sob controle”. O direito à informação não é um direito universalmente reconhecido, entre os administradores da coisa pública.

Então, é preciso levantar informações que não estão facilmente disponíveis e muitas delas se escondem sob comprometedores cobertores de mútua proteção corporativa. E que tipo de informações seriam essas?

Primeiro: qual a data exata em que a Des. Arno Hoeschl foi recapada? O que se gastou naquela licitação? Quem fez? Quem fiscalizou?

Segundo: em que data a boca de lobo começou a ceder. Foi mesmo poucos meses depois de ter sido refeita?

Terceiro: alguém comunicou os “órgãos competentes” desse problema? Quando a prefeitura tomou conhecimento do buraco? Que providências foram tomadas? Por que demorou o conserto? Quando foi feito? Por quem? A empresa que fez o recapeamento foi acionada para a “garantia” do serviço?

Quarto: que tipo de conserto foi feito que, em poucas semanas (foram mesmo poucas semanas? quais as datas exatas?) voltou a ceder? E agora, que providências foram tomadas? Por que resolveram abrir a área até a calçada? Foi identificado algum malfeito, desleixo, imperícia? De quem? Ou não se leva em conta isso, apenas se trata de mandar fazer de novo o serviço malfeito?

Quinto: quanto já foi gasto desde o recapeamento (incluindo o próprio recapeamento), naquele pequeno trecho da rua Arno Hoeschl? Esse problema é recorrente, nas ruas recapeadas? Ou foi um evento extraordinário?

Quando o repórter ou a repórter conseguir todas essas informações, ou pelo menos parte delas, poderá sentar-se à frente do computador e escrever uma reportagem. Que é diferente de um post nas redes sociais. Dependendo de como fará isso, poderemos considerar que se trata de informação jornalística. Um serviço público que ajuda o Poder Público, pela fiscalização que exerce, que ajuda à população por mantê-la informada e por oferecer possibilidade de levar seus reclamos ao Poder Público.

É “caça às bruxas” que fala?

Houve tempo em que algumas empresas jornalísticas acharam que era importante que seus repórteres andassem armados com um pacote de desconfianças-padrão. Chegavam procurando, agressivamente, culpados, maracutaias, querendo ver o sangue escorrer, cabeças serem cortadas e reputações expostas.

Naturalmente, essa “disposição” é tão daninha ao Jornalismo quanto a ingenuidade, ou a complacência. Os pré-julgamentos, as hipóteses, as suposições, não devem conduzir a investigação. Quando o repórter sai à rua apenas para confirmar a tese levantada pela pauta, ou para encontrar as “aspas” que ajudem a fechar um raciocínio que estava pronto na mesa do editor, está prestando um desserviço ao Jornalismo. A informação resultante estará contaminada, comprometida, tão apodrecida quanto o que recentemente se chama de “fake news”.

No caso do nosso buraco de rua, se tiver maracutaia (a empreiteira teve que economizar em material ou processos porque precisou repassar uma parte da verba para algum servidor público), a apuração poderá identificar. Se não tiver roubo, se for apenas um caso de má gerência, de desleixo de engenharia ou outro problema qualquer, a reportagem continuará relevante. E a pressão sobre servidores públicos se dará não pelas acusações gratuitas, mas pela fiscalização.

Um dos mistérios da engenharia: por que algumas tampas de “bocas de visita” (na mesma rua, quase ao lado) ficam bem alinhadas com o pavimento e duram anos e por que algumas se deterioram como se estivessem assentadas em torrões de açúcar?

Portanto, claro que qualquer pessoa pode distribuir informações nas redes, às vezes no momento em que os fatos estão acontecendo, mas jornalismo, a meu ver, não é apenas a foto do buraco de rua. Ou o carro caindo dentro do buraco. No jornalismo o buraco é mais embaixo. Provavelmente por isso tantos “empresários” de comunicação tenham medo do jornalismo e fujam dele como quem foge de um cão sarnento. Preferem entretenimento, historinhas de instagram, anódinos registros de comportamentos e inócuas discussões sobre sexo dos anjos.

Jornalismo não é para fracos. Ou preguiçosos. Ou para quem tem medo dos poderosos de ocasião. Ou, o que tem sido mais comum, quer tirar uma graninha dos poderosos da hora, “adaptando” o conteúdo para evitar saias justas com informações que constrangem justamente porque são verdadeiras.

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Cesar Valente Escrito por:

Jornalista e designer gráfico catarinense, manezinho, setentão. Ex uma porção de coisas, mas sempre inventando moda: a mais nova é o mestrado em Jornalismo na UFSC.

Um comentário

  1. Mario Medaglia
    dezembro 3, 2024
    Responder

    Não é release, não interessa

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