Neste e em alguns outros posts, vou contar um pouco do que consegui anotar, nos 31 dias que passei na China (em 2019), mais precisamente em Shenzhen, na província que antigamente era conhecida como Cantão (agora Guangdong), ao lado de Hong Kong. .
Shenzhen é uma metrópole recente. Como tantas outras na China, foi construída em menos de 40 anos. O fenômeno do crescimento do país foi muito bem resumido numa matéria recente (recente em 2019), publicada pela BBC Brasil (clique aqui para ler), a propósito dos 70 anos da revolução comunista (do Mao Zedong, que no nosso tempo se chamava Mao Tse-Tung).
A política de reforma e abertura, implementada por Deng Xiaoping a partir de 1978, mudou completamente a China. E a cidade onde fiquei é celebrada como um dos resultados positivos mais espetaculares dessa política.
A província de Guangdong é a mais populosa da China e comporta uma das maiores aglomerações urbanas do planeta. Ali vivem mais de 104 milhões de habitantes (censo de 2010).
“Sob a ideia de um “socialismo com traços chineses”, Xiaoping rompeu com o status quo e implementou uma série de reformas econômicas, centradas na agricultura, num ambiente liberal para o setor privado, na modernização da indústria e na abertura da China para o comércio exterior.”
70 Anos da Revolução Comunista na China: como país pobre e rural se tornou potência mundial em 4 décadas (BBC Brasil)
“TEMPO É DINHEIRO, EFICIÊNCIA É VIDA”
Essa frase, que se lê em vários locais e está num enorme cartaz, na confluência de vias importantes de Shenzhen (é o que mostra a foto em destaque, no alto deste post), É atribuída a Yuan Geng, um dos personagens centrais dessa aventura de crescimento e abertura em que a China se lançou.
Yuan mereceria um capítulo inteiro. Nasceu em Shenzhen em 1917, cursou academia militar, entrou para o Partido Comunista em 1939, participou da guerrilha anti-japonesa e depois da criação da República Popular da China (1949), foi consultor de Ho Chi Minh, presidente do Vietnam, para informação e artilharia. Depois de ocupar cargos de relevo no governo chinês, foi vice presidente executivo da China Merchants, um dos mais poderosos grupos econômicos do país.
Em 1979 Yuan criou o protótipo das zonas econômicas especiais da China, em Shekou, um bairro de Shenzhen. E desde então Shekou é aclamado como “o líder da reforma e abertura da China”. Aos pés da sua estátua, o texto gravado na pedra diz, entre outras coisas, o seguinte:
“Em Shekou, Yuan Geng defendeu e praticou um novo conceito de eficiência e trabalho duro, divulgando o lema “tempo é dinheiro, eficiência é vida”, que era saudado como “o primeiro estalo do trovão de primavera que rompe com a prisão do pensamento”. Este conceito é um dos símbolos da economia de mercado socialista com características chinesas”.
Yuan também dizia que “conversa fiada prejudica o país, trabalho duro revitaliza a nação”. Incansável, foi o criador de vários empreendimentos que hoje têm dimensão internacional, como o China Merchants Bank, e responsável pelo crescimento global do grupo China Merchants. Ele faleceu em 2016, aos 99 anos.
O MUSEU E A PROPAGANDA
Não se trata da propaganda publicitária, mas da propaganda propriamente dita, a difusão de informação política. Os chineses, pelo jeito, não se descuidam um só instante dessa tarefa: contar como chegaram até aqui, por que chegaram e quem os trouxe, com que objetivo.
O Museu de Shenzhen, um dos maiores do país, não tem, é claro, apenas propaganda e é um bom museu, mesmo do ponto de vista da museologia ocidental. Algumas coisas me chamaram a atenção. Primeiro, a ala reservada ao Deng Xiaoping, o grande artífice da “reforma e abertura” que impulsionou a China e a transformou na potência econômica e política que é hoje. Ele visitou Shenzhen em 1984 e 1992.
Aí, numa sala, vê-se uma cama de hotel, com todos os apetrechos de um quarto de hotel e a informação: Deng Xiaoping dormiu nessa cama. Ao lado, um escritório, provavelmente no mesmo quarto de hotel: Deng trabalhou nessa mesa, enquanto esteve em Shenzhen.
Adiante, o carro em que Xiaoping visitou a cidade e que, conforme tradição chinesa, tem um teto solar. com microfones, de onde o mandatário discursa, sem precisar sair do carro. O presidente atual usou carro semelhante hoje (setembro de 2019), nas festividades do aniversário da RPC. E, ao lado do carro, no museu, uma escultura, em tamanho natural (ele era bem baixinho) do próprio Deng. Os visitantes fazem selfies e tiram fotos diante do grande cara.
Num canto, uma pá e um baldinho. Claro, utilizados por Deng Xiaoping em sua visita de 1992, quando plantou uma árvore no jardim botânico. Uma estátua mostra como ele fez, para segurar a pá e cavar o buraquinho. As fotos estão abaixo.
A história da região está bem contada, desde os achados arqueológicos, os primeiros habitantes, as migrações, as lutas contra o invasor português, contra os japoneses. E também, naturalmente, o registro do nascimento e crescimento do Partido Comunista. Dioramas com esculturas feitas com grande fidelidade, mostram reuniões, assembleias e os principais personagens da estruturação do Partido que há 70 anos dirige o país.
Numa das alas é possível ver como era a vida, antes da chegada do progresso. Shenzhen era uma pequena vila, de pouco mais de 30 mil habitantes, Shekou era um povoado de pescadores. Os costumes e as informações históricas dessa época estão lá. E achei interessante a sala de um apartamento comum, que segundo a legenda pertencia a “um intelectual”, que foi doada ao museu e remontada, para mostrar como eram as condições de vida urbana nos primeiros tempos da reforma e abertura, ou seja, mais ou menos há uns 30 anos.
Numa estante em que estavam vários exemplares de livros escritos pelo “Grande Timoneiro”, Mao Zedong, os tais “livrinhos vermelhos”, a legenda em inglês me deixou meio intrigado: “material para estudo político dos fazendeiros de ostras (aquicultores)”. Achei que algo poderia ter se perdido na tradução, porque nos livros não há nada sobre ostreicultura. Mas logo caiu a ficha: na baía de Shenzhen, até hoje, se criam ostras e há atividade pesqueira e os livrinhos do camarada Mao ajudavam a fazer a cabeça do pessoal para a construção e manutenção da grande base de apoio às decisões do PC.
“EFICIÊNCIA É VIDA”
No museu achei uma foto que ajuda a entender como foi radical a mudança dessa parte da cidade (Shekou). Na foto antiga (antiga para os padrões chineses, deve ter 30 anos ou menos) vemos o Minghua, navio de construção francesa, batizado em 1962 pelo General De Gaulle. Fazia as rotas do Atlântico, entre Europa, África e Canárias. Em 1973 foi comprado pela China, Durante dez anos navegou entre a China e o leste da África. Até que, em 1983, foi ancorado em Shenzhen como um hotel turístico de luxo, parte do complexo chamado de Sea World, em Shekou. Tinha 253 quartos. Na foto antiga, vemos que o campo de golfe, construído sobre um aterro, acabou deixando o navio encalhado. E em 1998 o hotel flutuante encalhado chegou a fechar.
De lá pra cá, muita terra foi colocada sobre o mar. Depois de um tempo meio abandonado, o Minghua recebeu, de 2001 a 2004, uma reforma de 70 milhões de yuans (cerca de 40 milhões de reais) e voltou a ser hotel, com vários restaurantes e bares. Seu entorno foi modificado, transformando-se numa grande área de lazer, com estação de metrô. Junto ao barco foi feito um lago, com chafarizes, com shows notunos de “águas dançantes”. A foto nova foi feita por mim do terraço do hotel Hilton. Pelo ângulo, dá pra ver que o hotel foi construído onde, na foto antiga, havia apenas mar. Localizaram-se? Pois então, essas construções da foto nova têm menos de 20 anos.
Não é à toa que, no museu, tem alas homenageando os trabalhadores da construção civil. Constroem rápido, realizam projetos muito grandes e completos: enquanto constroem os prédios, constroem linhas de metrô, fazem a urbanização, plantam árvores (pelo tamanho, devem ter sido transplantadas grandinhas, não daria tempo para crescer tanto).
É isso, por hoje. É tanta coisa que acabo sempre me estendendo mais do que deveria. Espero que tenham gostado, porque daqui a alguns dias terá mais um capítulo. Tentarei não cair na tentação de ficar só falando nisso. Até.