Não concordo com o Moacir Pereira, mas ainda acho que merece respeito.
Sou amigo do Moacir Pereira desde a década de 1970. Acompanhei, às vezes mais à distância, às vezes mais de perto, sua carreira. Ajudei em atividades do sindicato que ele presidia. Fiz a capa e o prefácio do seu primeiro livro. Participei com ele, há 40 anos, da fundação do Curso de Jornalismo da UFSC. Sucedi-o como coordenador do curso. Fomos colegas no jornal O Estado. Embora não tenhamos convivido muito tenho, com ele, uma relação de lealdade profissional. Por isso, e a partir disso, é que decidi escrever este texto.
Desde 2016 tenho notado que o jornalista Moacir Pereira mudou. Ao que tudo indica, deliberadamente. A mudança, para quem o conhecia antes, tem ficado clara na forma como aborda temas da política nas suas colunas e comentários. Não se trata de uma mudança de posição ou algum movimento inesperado no espectro político. É mais, a meu ver, uma mudança no tom. Ao radicalizar ideologicamente o discurso surpreende quem, como eu, o acompanha desde o século passado.
Em setembro de 2016 enviei um email para o meu amigo Moacir Pereira, dizendo o que pensava sobre essa nova faceta “militante radical” que ele começava a mostrar em notas e compartilhamentos. Ele respondeu agradecendo os comentários, justificando sua posição e, a certa altura, escreveu: “Assumi riscos conscientemente, porque não é hora de omissão. Muito ao contrário”.
Em dezembro de 2016 voltei a escrever para ele, em privado, sobre os problemas que via nessa “nova fase”. E desde então não voltei ao assunto. Fizemos algumas tentativas de um almoço ou café, para trocar ideias, mas ficou por isso mesmo. Até ontem (17/9/19), quando arranjamos tempo para conversar um pouco. E pude, mais uma vez, dar a minha opinião sobre como ele vem conduzindo a carreira e, principalmente, ouvir suas justificativas e explicações. E contei a ele que iria escrever uma coisa do tipo “Precisamos falar sobre o Moacir Pereira”.
Pessoalmente, não vejo grandes diferenças entre o jovem Moacir, que presidiu o Sindicato dos Jornalistas e depois fundou o Curso de Jornalismo da UFSC e o Moacir de cabelos brancos com quem conversei ontem. Mas, no que ele tem publicado, é evidente que está levando ao pé da letra aquela opção de “não se omitir”, de certa forma reagindo, indignado, ao que ele chama da “radicalização do discurso da esquerda”.
O fato é que, mesmo discordando do rumo que ele deu a essa “nova fase” e tendo uma visão diferente sobre a política nacional, não posso reduzir, ou relativizar, a importância que o Moacir Pereira tem para o jornalismo catarinense. E, por paradoxal que possa parecer, não estou tão preocupado com o que o Moacir pensa hoje, quanto com o que pensam, hoje, do papel histórico do Moacir, os nossos colegas.
Por isso fico apreensivo quando vejo que muitos, irritados ou inconformados com o que o Moacir vem publicando, já não escondem o que pensam dele. Esse tipo de reação pode levar muitos, que o conhecem pouco ou só o conheceram na “nova fase”, a achar que ele é apenas isso. Alguns o classificam, publicamente, como porta-voz de uma corrente, de um grupo, de uma facção, sem distanciamento para fazer qualquer análise mais abrangente, com textos escritos com o desejo de aniquilar o “inimigo”, compartilhando notas do whatsapp sem qualquer preocupação jornalística sobre a veracidade ou correção do que é dito, como se fosse algum militante. A meu ver não é bem assim, mas também não me parece uma avaliação totalmente incorreta. Embora esse confronto esteja adequado ao climão que se instalou no País, não ajuda em nada a entender melhor o que está acontecendo ao nosso redor.
A avaliação que o Moacir faz das ações radicais, da presença numerosa e da influência hegemônica do que ele chama de “esquerda” em tantos espaços (em especial na área de humanidades das universidades) está na gênese do tom que ele tem dado a várias de suas notas. Eu acho que é uma visão exagerada e, em muitos aspectos, equivocada, mas não se pode negar a ele o direito de expressar sua opinião.
Não acho justo rotular o Moacir Pereira disto ou daquilo, usando como medida apenas as publicações recentes. Por isso, sinto-me no dever de recuperar um pouco da memória do jornalismo, e do ensino do jornalismo, para mostrar por que continuo respeitando o Moacir Pereira. Respeito-o por sua história, mesmo que discorde da forma e do tom com que ele resolveu conduzir sua carreira de uns tempos para cá.
“A trajetória marcada pela ditadura militar”
Liberdade e direito à informação, os temas iniciais
Em 2004 o Antônio Hohlfeldt e a Maria Cristina Gobbi reuniram num livro, sob o título “Teoria da Comunicação: Antologia de Pesquisadores Brasileiros”, textos e resumos biográficos dos pesquisadores que tinham, até ali, sido destacados com o Prêmio Luiz Beltrão, iniciativa anual da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação). Moacir Pereira era um desses premiados. O livro foi publicado pela editora Sulina.
Maria Isabel Amphilo, doutora em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo, fez a resenha do livro organizado por Hohlfeldt e Gobbi e nela aparece aquele Moacir Pereira que tinha sido presidente do Sindicato dos Jornalistas e criador do Curso de Jornalismo da UFSC:
“A trajetória desses pesquisadores brasileiros é marcada pela ditadura militar e a instalação do AI-5. Os três primeiros livros de Moacir Pereira abordam a temática da “liberdade” e o “direito e a informação”. Sua formação possibilitou bases sólidas para a elaboração do “direito à informação”. Para Marques de Melo, dois de seus livros merecem destaque especial: “O golpe do silêncio” (1984) e “O direito à informação na nova lei de imprensa”(1993), no primeiro Moacir Pereira trata da censura imposta e no segundo, da democratização da comunicação. Temas de suma importância numa realidade de repressão e, além disso, de um país que sofre de um analfabetismo grave, onde o rádio e a televisão tornam-se os meios de maior alcance à grande massa da população.”
Tanto Marques de Melo, amigo, conselheiro e uma espécie de tutor do Moacir no período de criação do curso de Jornalismo da UFSC, quanto Luiz Beltrão, que deu nome ao prêmio, não eram figuras benquistas pela ditadura militar. E isso não parecia, na época, incomodar Moacir Pereira. Beltrão sofreu uma “cassação branca”. Sua tese de doutorado, defendida em 1967, não pode ser publicada na íntegra naquela época. “Nem mesmo o título de doutor foi imediatamente concedido ao pesquisador. Só em 1971, o livro intitulado ‘Comunicação e Folclore’ foi publicado sem a parte teórica, uma vez que foi considerada subversiva”, informa-nos o artigo “A primeira Teoria da Comunicação genuinamente brasileira: o legado de Luiz Beltrão” (de Carmen Amorin e Ferraz Lima, Janine Marques Passini Lucht e Maria Isabel Amphilo R. Souza).
Marques de Melo, falecido em junho de 2018, iniciou sua carreira acadêmica como assistente de Luiz Beltrão e em 1973 tornou-se o primeiro doutor em Jornalismo do Brasil. De 1974 a 1979, durante o regime militar, esteve impedido de exercer a docência em universidades públicas brasileiras.
E Marques de Melo não foi o único intelectual “de esquerda” com quem Moacir conviveu ou conversou, nessa época. Aquele Moacir era, sem dúvida, um colega aberto ao diálogo, que respeitava e era respeitado.
No texto que apresenta o livro sobre os pesquisadores premiados, no site da editora Sulina, está a descrição da estrutura da obra:
“Pela primeira vez, em um só volume, tem-se um conjunto de ensaios, ou excertos de ensaios, que abarcam quatro diferentes gerações de pesquisadores brasileiros, boa parte dos quais já com repercussão em toda América Latina. Mais que isso, cada texto vem seguido de um pequeno ensaio bio-bibliográfico, o que, igualmente, se concretiza pela primeira vez entre nós. Para cada autor, um discípulo seu foi escolhido: a este coube o ensaio a respeito da obra e a seleção do texto ou fragmento apresentado.”
Para minha surpresa, e honra, Moacir me convidou para fazer o ensaio “bio-bibliográfico” sobre ele, que acabou mais biográfico que bibliográfico. E o republico a seguir, sempre lembrando que foi escrito em 2004. Até cheguei a pensar em atualizá-lo, mas fiz apenas pequenos ajustes. Prefiro manter, no essencial, a lembrança daquele Moacir que sabia conversar com quem tinha ideias opostas às suas, que procurava checar as informações que divulgava e que convivia com marxistas, petistas, comunistas, militares, maçons e agnósticos, sem estresse. O texto abaixo expressa, com sinceridade e sem elogios gratuitos, como eu via aquele Moacir de 2004 e tenta mostrar o papel relevante que ele teve no jornalismo catarinense.
As múltiplas trajetórias de Moacir Pereira
O resumo biográfico publicado no livro de Hohlfeldt e Gobbi
A primeira pergunta que deve ser feita, para começar qualquer conversa sobre o Moacir Pereira é: de qual deles estamos tratando? Sim, porque esse irrequieto colega aventurou-se por muitas trajetórias, simultaneamente. Construiu várias carreiras ao mesmo tempo. Não é próprio do Moacir Pereira aquele hábito pacato, que tantos temos, de fazer uma coisa de cada vez e cada coisa a seu tempo, com calma e vagar.
Portanto, para entender Moacir Pereira é preciso, antes de qualquer coisa, saber que, na verdade, ele não é um só. São muitos, todos ao mesmo tempo. Senão vejamos:
– Existe o professor Moacir Pereira, a quem devemos a criação e a instalação do curso de Jornalismo da UFSC. De auxiliar de ensino, em 1970, a professor adjunto, cumpriu todas as etapas de uma vida dedicada à Universidade Federal de Santa Catarina, até se aposentar, em 1995. Lecionou principalmente disciplinas relacionadas à Legislação e à Deontologia do Jornalismo.
– Existe o repórter Moacir Pereira. Começou no rádio em 1965 e depois fez jornal, TV e revista. Já no início desta carreira, fez parte da equipe do programa Vanguarda, liderada pelo lendário Adolfo Zigelli. O jovem repórter de voz agradável e dicção caprichada começava a ser conhecido profissionalmente junto aos nomes mais respeitados do rádio catarinense. Continua repórter até hoje, embora publicando matérias mais esporadicamente.
– Existe o acadêmico Moacir Pereira, autor de vários livros, mestre e doutor. Trafega entre o direito e o jornalismo e na maior parte do tempo costura uma adequada junção entre as duas disciplinas. Uma carreira longa que recentemente foi premiada com a imortalidade: valeu-lhe a eleição para a Academia Catarinense de Letras.
– Existe o sindicalista Moacir Pereira. Que foi presidente do Sindicato dos Jornalistas numa época em que uma das atividades inerentes ao cargo era tentar libertar dos porões da polícia política os colegas que de tempos em tempos eram recolhidos. E que continua em atividade, na diretoria da Associação Catarinense de Imprensa.
– Existe o Moacir Pereira colunista e comentarista político. A intimidade com o rádio o levou a ser comentarista de televisão, atividade que complementou com uma coluna publicada nos jornais. Sim, no plural. Ele foi o primeiro a ter a coluna publicada em dois jornais estaduais simultaneamente. Hoje (2004) é possível ler Moacir Pereira em dezenas de diários.
– Existe o Moacir Pereira advogado, formado em 1970, que exerceu algumas funções no serviço público e aposentou-se como Procurador do Estado junto ao Tribunal de Contas.
E seria possível enumerar ainda umas outras tantas carreiras, mas acho que estas são suficientes para começar a entender o Moacir e como ele funciona.
O primogênito do seu Manoel e da dona Hercília nasceu em Florianópolis a 10 de agosto de 1945. A capital catarinense, na década de 50, era uma pequena cidade, pacata e muito propícia às infâncias tranqüilas, às brincadeiras alegres e saudáveis. Podemos, portanto, passar rapidamente para o momento em que, em 1965, com 20 anos, o estudante de direito começa a trabalhar como repórter noticiarista na rádio Anita Garibaldi. É um bom ponto de partida. Porque, a partir daí, a comunicação passou a ocupar o lugar de honra. E o direito aparece sempre como coadjuvante importante.
1. Localização
Como seria de se esperar, as diversas atividades ou profissões do Moacir Pereira são regidas por uma conduta pessoal única. Coerente e lógico, é possível entender seu trânsito pela história do jornalismo catarinense e a sua própria história, examinando alguns conceitos básicos, que podem localizá-lo no espectro ideológico e na tipificação de sua forma de agir.
A DIREITA E A ESQUERDA — Quando Moacir Pereira começava a construir sua vida profissional, o Brasil estava embarcando na ditadura. Ou no “movimento” de 64, também chamado de “revolução”. Moacir trabalhou com Adolfo Zigelli, um militante udenista que também era radialista, que em alguns anos evoluiu, transformando-se num jornalista elogiado pela sua independência, respeitado pela equidistância com que tratava os temas políticos e aplaudido pela coragem com que enfrentava os assuntos mais delicados.
O curso de Direito da UFSC, naquela época, não era conhecido como reduto do pensamento de esquerda. Ao formar-se, em 1970, Moacir Pereira já era membro da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (Adesg). Ativo, ocupou várias funções na seção catarinense da Adesg e participou como conferencista de ciclos de estudos. Definitivamente, não é o perfil de um jornalista de esquerda.
Mas, e aí talvez resida um dos segredos da credibilidade e boa fama que Moacir Pereira manteve por décadas, nunca se isolou no “lado de lá”. Não por acaso, seus três primeiros livros têm “liberdade” no título e tratam do direito à informação. Note-se que foram publicados entre 1976 e 1979, quando ainda não era coisa banal falar sobre isso. E, ainda mais, o primeiro deles, Comunicação e Liberdade, foi inicialmente um trabalho apresentado justamente num dos Ciclos de Conferências da Adesg-SC. Levou um tema habitualmente tratado em rodas de esquerda ao centro onde era refinada a sustentação teórico-ideológica do sistema vigente.
No Sindicato, como um dos diretores, ou a partir de 1975 como presidente, abriu as portas para os jovens colegas sem perguntar-lhes a orientação política e sem preconceitos. Chamou famosos jornalistas de esquerda, do centro do País, para palestras no Sindicato.
Escreveu, assinou e entregou pessoalmente, na Assembléia Legislativa, libelos em defesa de direitos que, na época, muita gente teria e teve receio de assinar.
Foi assim também quando criou o curso de Jornalismo. Aceitou sem qualquer problema os resultados dos concursos, que trouxeram para Santa Catarina, por exemplo, Daniel Herz e Maria Helena Hermosilla, estudiosos de formação marxista e que foram seguidos, mais tarde, por Adelmo Genro Filho, um importante teórico da esquerda. Respaldou, com seu prestígio institucional, com o respeito que desfrutava na Reitoria, as inovações que foram propostas e que anos depois acabariam colocando o curso entre os mais conhecidos e procurados do País.
A classificação (direita, esquerda), que depois do fim da ditadura e da queda do muro de Berlim perdeu força e clareza, já era difícil de ser aplicada ao Moacir ainda na década de 70. Não fazia segredo de suas posições, mas não era regido por elas no relacionamento com colegas que pensavam de outra maneira, aparentemente seguindo a velha e boa escola de Sobral Pinto, sintetizada na frase atribuída a Voltaire: “Discordo daquilo que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres”.
O FUTURO E O PASSADO — Assim como Moacir Pereira ignorou o abismo que teoricamente deveria existir entre direita e esquerda, também atravessou, sem grande esforço, o fosso que geralmente se imagina existir entre os que já foram e os que estão chegando. O velho e o novo. Entre os, como eram chamados pelos jovens, “pelegos ultrapassados do sindicalismo de antigamente” e os auto-denominados “dinâmicos e idealistas praticantes do novo sindicalismo, inspirados nas lutas dos metalúrgicos do ABC”. Moacir Pereira fazia parte daquela turma que os jovens queriam derrubar. Era ainda um jovem, mas seu nome estava lá, na diretoria dos velhos jornalistas.
Conseguiu, porém, fazer amigos do lado de cá. Não que tenha de alguma forma se bandeado ou virado casaca. Continuou leal aos velhos companheiros. Só que não se isolou nem teve medo do novo. E obteve o respeito de muitos dos jovens companheiros por ser exatamente quem é.
Pode ser que a convivência com o Adolfo Zigelli, no dia-a-dia do programa Vanguarda, tenha deixado lições importantes. Como o apreço pela ousadia, pela criatividade e pelo novo. Ao transitar entre a velha ordem e a nova turma, sem receio dos rótulos e sem sentir-lhes o peso, Moacir Pereira foi ousado. Talvez esse movimento não tenha sido premeditado. Mas certamente ajudou a fazer com que seu nome profissional ganhasse novos contornos.
A PRESSA JORNALÍSTICA — O repórter Moacir Pereira sempre ditou o ritmo dos seus demais personagens. Não há tempo a perder porque a matéria tem que estar na rua cedo e rápido, antes dos concorrentes. Nas redações da década de 70, o ruído das máquinas de escrever tangidas por datilógrafos mambembes, que usavam dois dedos, em média, era sobrepujado pela metralhadora daquele rapaz que datilografava com os dez dedos, em grande velocidade.
Eu mesmo parei, uma vez, para admirar o espetáculo: no gravador, um entrevistado ia falando e, à máquina, Moacir transcrevia. Sem parar a fita. Ou pelo menos com pouquíssimas pausas. Quem já tentou alguma vez degravar uma fita sabe como esse exercício pode ser penoso. Não para ele, treinado, certamente, na rádio-escuta com que os noticiários radiofônicos da década de 60 eram feitos.
Essa urgência, típica do jornalismo, esse pequeno espaço de tempo entre a apuração da notícia e sua publicação, marcam o tempo todo a produção de Moacir Pereira e suas ações, nas várias atividades. O projeto do Curso de Jornalismo, por exemplo, foi elaborado, aprovado e colocado em execução em poucos meses, bem menos de um ano.
Os livros que escreveu foram, em sua maioria, livros de elaboração rápida e publicação em oportunidades precisas. Como uma reportagem, que precisa ser publicada na hora certa. E se tivermos paciência para comparar datas, os livros eram escritos e publicados sem que qualquer das outras atividades fosse interrompida. Uma campanha sindical, a participação diária em noticiários de TV, viagens a trabalho, aulas na Universidade, reuniões em inúmeras associações, colunas ou matérias em jornais faziam parte do dia-a-dia normal. Preparar um livro encaixava-se nessa rotina, como uma atividade a mais.
Para completar o contexto, ainda é preciso medir o tempo entre o início de um projeto e sua publicação. Nada de anos e anos de preparação, anos e anos de elaboração, anos e anos de finalização e acabamento. Exatamente o oposto de tantos pesquisadores e intelectuais que gastam suas licenças, esgotam seus períodos de afastamento para, ao final, pedir prazos adicionais e nem sempre apresentar, como resultado, alguma obra concreta.
Claro que é possível encontrar, aqui e ali, as marcas que esse ritmo de trabalho sempre deixa. Mas o sistema Moacir Pereira de fazer muita coisa ao mesmo tempo e todas muito rapidamente, tem se mostrado, no geral, eficiente.
2. Resumo biográfico
Melhor do que escrever um texto, seria fazer uma tabela, com várias colunas, para alinhar a série de coisas que estavam sendo feitas a cada data. Mas isso tornaria enfadonha uma vida que, até onde é possível perceber, não tem tempo para isso. Enumerar ano a ano dezenas de atividades relevantes a cada etapa, também pode resultar injustamente monótono, um castigo que nem leitores nem biografado merecem.
Vamos fugir desse detalhamento, tentando encontrar apenas os pontos-chave das principais trajetórias, que possam ajudar, de alguma forma, na construção deste perfil.
A meu ver esses pontos são quatro:
1. A formação em direito (graduação e mestrado) ofereceu o alicerce teórico. A argumentação sobre a legalidade e legitimidade do direito à informação, construída a partir de uma linguagem técnica não marxista, foi a principal ferramenta com a qual Moacir Pereira navegou por temas delicados para a época.
2. O envolvimento com a prática jornalística desde os tempos de estudante foi o motor, a motivação adicional. O cotidiano do professor e do pesquisador era agitado pelo noticiário do dia, pela pressão da matéria que precisava ser fechada, pelo tom do comentário na TV, pela edição das notas que deveriam compor a coluna de jornal. E fornece o conteúdo que passa a ser examinado pelo prisma do direito.
3. A participação sistemática e ativa nos sindicatos e federações dos jornalistas e dos radialistas, e em tantas outras entidades associativas, tanto de comunicação (UCBC, Intercom, etc.) quanto religioso-filantrópicas (Irmandade do Senhor Jesus dos Passos, entre outras) ou leigas, demonstram um comprometimento pessoal efetivo com ações coletivas e comunitárias.
4. O círculo virtuoso da informação. Por participar de muitas associações, conversa e encontra muita gente, por ser colunista e comentarista de TV e jornal, precisa conversar e encontrar com muita gente para se abastecer, e ao publicar o que ouviu e observou, torna-se também alvo de quem tem interesse em dizer ou não dizer alguma coisa. E esse círculo, que se movimenta em velocidade crescente, permite que ele capte e perceba que tipo de assunto ou tópico pode ter maior repercussão e que problema aflige a maioria.
Na origem de cada um de seus 18 livros, publicados num período de 27 anos (contabilizados aqui até 2004), esses quatro elementos estão presentes, com predomínio de um ou outro, dependendo do tema ou da época. Mas todos se beneficiam desse conjunto de propriedades. E são sempre livros de um jornalista. Alguns claramente livros-reportagens. Mas mesmo os de conteúdo fundamentalmente teórico, foram concebidos e surgem embalados pela oportunidade jornalística.
Ao longo desses anos, como seria de se esperar numa pequena capital com menos de 400 mil habitantes, que ainda guarda e cultiva algum ranço provinciano, Moacir Pereira não fez apenas amigos e nem colhe apenas elogios.
Ser bem sucedido, num ambiente como este, tem seu preço. Moacir sempre investiu todo seu tempo e esforço para ser visível e respeitado em suas múltiplas atividades e para adquirir, para si e sua família, um padrão de vida decente. Essa visibilidade, ao mesmo tempo em que coloca o homem de comunicação em sua justa dimensão, atrai a atenção e incomoda uns tantos.
Esses afirmam ter encontrado, nas atividades e ações do Moacir, provas de comprometimento (com governantes, com poderosos de plantão). Mas, a pressa em acusar produz argumentos pífios. A exemplo daqueles que, na época da ditadura, brandiam as ligações de Moacir com a Adesg-SC e as boas relações com as autoridades militares, para rotulá-lo. Ora, na mesma época em que faziam isso, ele publicava, quase que ano após ano, livros que contrariavam, na essência, o status-quo. E discutia, diante de oficiais militares, leais ao regime que mantinha a imprensa sob censura, a necessidade da liberdade de informação. Assim o jovem bacharel e repórter, de direita, fornecia armas teóricas e argumentos políticos que indicavam o mesmo norte para o qual a esquerda também se dirigia.
Portanto, não se trata de um profissional de classificação simples. Não é possível imaginar que, apenas por ter participado de tantas missões oficiais, a convite tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo, as informações de suas colunas tenham ganho uma cobertura edulcorada, mais conveniente ou mesmo conivente.
3. A voz do mestre
Moacir Pereira teve e tem José Marques de Melo como sua principal referência em jornalismo e comunicação. Uma relação de décadas foi construída sobre respeito mútuo. Em setembro de 2003, quando Moacir foi empossado como titular da Cadeira nº 3 da Academia Catarinense de Letras, José Marques de Melo esteve presente e fez o discurso de onde retirei os parágrafos abaixo. Acho que fornecem algumas pistas adicionais para que possamos completar este perfil.
“Circunstâncias fortuitas me converteram em personagem maldito pelo sistema político dominante no país durante o regime militar. Processado como subversivo, acabei sendo expulso da Cátedra de Jornalismo que ocupava na Universidade de São Paulo. Incluído nas listas que os serviços secretos, tanto os oficiais quanto os oficiosos, disseminavam pelo circuito acadêmico, fiquei em quarentena, deixando de ser convidado para dar aulas ou fazer conferências em várias universidades públicas. Somente retornei a Florianópolis em 1979, quando aqui se iniciava o Curso de Jornalismo idealizado pela equipe em cuja liderança esteve Moacir Pereira. A seu convite proferi uma palestra para os alunos do novo curso e gravei uma longa entrevista sobre as relações entre imprensa e ideologia, tendo a chance de expor meus pontos de vista sobre o cenário jornalístico brasileiro, com absoluta liberdade de expressão. Essa entrevista foi publicada pelo Jornal da Semana e depois incorporada ao seu livro A Imprensa em Debate (Florianópolis, Lunardelli, 1981).
Tive minha atenção despertada para a circunstância de que, mesmo ainda sendo considerado persona non grata ao sistema de poder nacional, minhas idéias foram consideradas na consolidação do novo curso. Moacir Pereira me pedia conselhos úteis para estruturar um “bom” curso de jornalismo. Limitei-me a transmitir duas lições que havia aprendido com meus mestres pernambucanos, respectivamente, Luiz Beltrão e Paulo Freire:
1. Priorizar a pesquisa no processo pedagógico, de modo a encontrar sintonia entre os conteúdos educativos e as aspirações nacionais.
2. Praticar o diálogo entre alunos e professores, no sentido de construir um ambiente democrático de ensino-aprendizagem.
Acompanhando posteriormente a fisionomia do curso catarinense, liderado por Moacir Pereira, verifiquei com alegria que minhas recomendações não haviam sido palavras ao vento. Elas foram assimiladas corretamente, ensejando estruturas vanguardistas, tomadas como paradigmáticas por outras universidades brasileiras.
Depois de beneficiado pela Anistia Política de 1979 e reconduzido à minha cátedra de Jornalismo na Universidade de São Paulo, aqui retornei diversas vezes, surpreendendo-me o caráter permanentemente inovador da formação de jornalistas diplomados pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Em função disso, não poupei esforços no sentido de acolher os jornalistas que Moacir Pereira recrutara para sua equipe docente, engajando-os nos programas de mestrado e doutorado que mantínhamos na USP. Vários componentes da atual geração de professores da UFSC ali conquistaram seus graus acadêmicos, preparando-se para novas ações, sempre vanguardistas.
Procurando dar o bom exemplo aos seus jovens colegas, Moacir Pereira desenvolvia sua própria trajetória intelectual pesquisando temas emergentes e convertendo suas pesquisas em obras que adquiriam projeção nacional.
Quero destacar particularmente dois livros publicados em São Paulo que marcaram época: O golpe do silêncio (1984), analisando a censura imposta à mídia pelo regime militar no episódio histórico das “Diretas-já”, e O direito à informação na nova lei de imprensa (1993), fazendo a exegese das propostas legislativas que pretendem regulamentar de forma democrática o fluxo jornalístico em nosso país.
Enquanto permaneceu na atividade universitária, Moacir Pereira combinou de forma eficaz o trabalho docente e de pesquisa com o desempenho de funções profissionais na mídia. Desta maneira, retroalimentou sua missão pedagógica com a seiva do dinamismo peculiar ao jornalismo diário, evitando esclerosar-se e burocratizar-se.
Talvez por isso mesmo é que ele tenha servido como modelo que vem inspirando a atuação jornalística de tantos dos seus antigos alunos, exercendo a profissão em território catarinense ou em outras plagas da geografia nacional.
Modelar também tem sido o curso por ele liderado na sua gênese, cuja vocação para atualizar-se didaticamente e para ocupar um lugar de destaque como espaço investigativo tem merecido reconhecimento público.
Não foi outra a intenção do júri que concedeu a Moacir Pereira, em 1998, o Prêmio Luiz Beltrão de Ciências da Comunicação na categoria “Maturidade Científica”. Pesaram nessa decisão os seus méritos intelectuais, evidentes no conjunto da obra que escreveu e publicou, mas influíram também as conquistas institucionais granjeadas por sua obra coletiva, ou seja, o Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina.
Esse ciclo de legitimação do itinerário percorrido por Moacir Pereira no mundo da cultura completa-se agora com sua ascensão à Academia Catarinense de Letras.”
4. Resumo bibliográfico
Os 18 livros de Moacir Pereira (em 2004) podem ser reunidos em dois grupos, conforme seu tema.
1. As grandes reportagens — livros que traçam biografias ou registram fatos de interesse jornalístico. Entre eles estão o Profeta da Esperança, de 1992, que conta a visita do Papa João Paulo II a Florianópolis; O Golpe das Letras, de 1997, sobre os eventos que envolveram o governador catarinense Paulo Afonso Vieira e políticos de outros estados; as biografias do jornalista Adolfo Zigelli (2000), do senador e ex-governador Vilson Kleunübing (2001), do ex-governador Ivo Silveira (1998); e o registro de viagem Santa Catarina, Padroeira: Tesouros no Sinai (2002).
2. Jornalismo e comunicação — nesse grupo estão os demais livros, em sua grande maioria com forte tempero legal e grande identificação com o momento histórico. Os primeiros, reforçando a necessidade de restabelecimento dos direitos fundamentais. A seguir, o acompanhamento dos momentos decisivos do movimento Diretas-Já e a transição política. Depois, a instalação do estado de direito, com a discussão sobre a nova Constituição. No livro publicado em 1992 dedica-se a estudar as complexas relações entre imprensa e poder em Santa Catarina, estado onde praticamente todos principais veículos de comunicação nasceram sob nítida coloração político-partidária.
E finalmente, como uma espécie de comprovação da agilidade a que me referi em diversos momentos deste perfil, Moacir lançou, no início de dezembro de 2003, Jornalismo, Cultura e Cidadania que reuniu os discursos feitos por ocasião de sua posse na Academia Catarinense de Letras, ocorrida a menos de três meses.
César, interessante rever a trajetória do M.P. outra hora farei alguns comentários.
Abraços