O MANGUEZAL DO RATONES

Os rios Ratones e Papaquara desaguam numa área de mangue que tem sido maltratada e ignorada há bastante tempo. Mas quem se importa?

Os leigos acham que os jornalistas estão sempre fazendo reportagens ou têm sempre obrigação de dar informações novas e bem apuradas. Mais ou menos como aquele pessoal que, ao encontrar um médico conhecido na rua, já vai mostrando a pereba pra receber um diagnóstico e uma receita ali mesmo e de graça. Ou o sujeito que, ao ver no aeroporto um comediante que ele admira, já se chega pra ver se ele diz alguma coisa engraçada “que bom te encontrar aqui, estava mesmo precisando dar umas risadas”.

É verdade que o uso do cachimbo pode entortar a boca. Então, depois de passar quase uma vida inteira olhando criticamente para todos os lados, a gente acaba sempre querendo saber mais sobre qualquer coisa que vê ou ouve. Como atualmente sou mais designer gráfico, consultor editorial e avô de seis netos e uma neta do que jornalista propriamente dito, não tenho feito reportagens com a frequencia que fazia há alguns anos. Mas não será por isso que deixarei de meter o bedelho e dar pitaco nessa seara.

Os mais antenados devem ter notado que esse trololó está armazenado numa categoria nova: “pautas”. É nessa categoria que, de vez em quando, falarei sobre assuntos que, a meu ver, mereceriam uma reportagem, porque acho que têm um bom potencial para interessar leitores, telespectadores, espectadores, ouvintes e curiosos em geral. Basta investigar direito que dá um bom caldo, cativa a audiência e pode render mais que apenas uma matéria.

É desta região, cortada pela SC 402 no norte da Ilha de Santa Catarina, que estamos falando. Mapa do Google.

O RIO SEM CURVAS

Já ouviram falar no rio Papaquara? Claro, quem é daqui, ou estava aqui nos verões passados, deve ter ouvido. É aquele rio, que sai lá da região de Canasvieiras (mais propriamente do Morro do Caçador, na Cachoeira do Bom Jesus) e desagua perto da Daniela. E ficou famoso porque a Casan, flagrada jogando esgoto no rio do Brás (que desagua no mar. em Canasvieiras), teria “solucionado” o problema desviando seu despejo para o Papaquara, que desagua lá longe. O que não foi nenhuma novidade, porque tem um vertedouro da estação de tratamento de esgotos de Canasvieiras para o pobre rio, desde a década de 90.

O Papaquara, também conhecido como Cachoeira ou Jurerê, um dia já foi um rio “normal”, daqueles que vai criando curvas caprichosas no seu caminho para o mar. Mas lá pelos anos 40 do século passado, para atender reclamos dos proprietários de terras, que queriam secar a área úmida de mangue, foi transformado num canal retilíneo, como aparece nos mapas e fotos de satélite recentes.

Isso de desviar rios para secar terrenos é mais ou menos da mesma época em que a expressão “limpar o terreno” significava tirar toda a vegetação nativa. Parecia, na época, ser coisa de quem queria o desenvolvimento, o progresso. E terra mais seca permitia criar gado e outros animais.

Quando começaram a pensar numa ligação rodoviária mais direta para Jurerê (a estrada antiga obrigava a ir a dar a volta por Canasvieiras), alguém teve uma ideia “genial” complementar: fazer pontes sobre os rios Ratones e Papaquara e instalar, embaixo das pontes, comportas que impedissem as marés altas de entrar no mangue. Uma intervenção humana radical e completa no ecossistema daquela região. Uma rodovia que corta o mangue, como um bisturi corta a carne e secciona veias e artérias e pontes que impedem, em vez de permitir, o fluxo das águas.

As setas assinalam as pontes da SC 402 que tinham comportas para impedir a entrada da água do mar. Foto do Google Maps.

O RIO SEM PEIXES

O outro rio que desagua naquele mangue é o Ratones. Também foi “canalizado”, tem trechos sem curvas. Não é muito extenso, mas é o maior rio da Ilha de Santa Catarina. E antes da construção das comportas, o pessoal conta que pescava não só peixes, como também camarões. Depois, sem a água do mar e recebendo a água poluída do Papaquara (os dois rios tem ligação na foz), a coisa foi deteriorando.

Até que, em 2014, saiu uma decisão da Justiça, numa Ação Civil Pública, mandando retirar as comportas que havia sob as pontes, para que a água do mar voltasse a cumprir seu papel e o mangue pudesse respirar e tornar-se o criadouro que se espera que os mangues sejam.

A carta aberta dos pescadores

OBRAS PELA METADE, PRA VARIAR

No sábado (21/9/2019), ao passar pela SC 402, recebi um folheto de um grupo que estava fazendo uma manifestação na rodovia, sobre a ponte do rio Ratones. Era uma carta aberta da Associação dos Pescadores do Rio Ratones e da Associação dos Moradores de Ratones, reclamando do atraso das obras de retirada das comportas.

As obras começaram em 2016 e numa das primeiras placas que estavam no local o prazo de conclusão era de 360 dias. Mas foram sendo solicitados adiamentos e o prazo mais recente para conclusão era o final de maio de 2019. A construtora já pediu sete prorrogações de prazo e o Deinfra tem atendido, com o habitual zelo maternal com que cuida do bem estar dos empreiteiros.

Aí a comunidade subiu nas tamancas, porque tiraram parte das estruturas e deixaram vergalhões e pedaços de pilastras, que são uma ameaça a quem passa por ali, de canoa. Sem as comportas, na subida da maré, a água é canalizada por ali com força (vejam bem, a SC 402 funciona como uma enorme barragem sobre o mangue, com passagem para a água apenas embaixo das duas pontes, o que aumenta a força das correntes nesses locais).

A ponte sobre o rio Ratones, embaixo da qual estão os entulhos a que os pescadores se referem. Foto Google Earth.

TEM ASSUNTO DE MONTÃO

Quem conseguiu chegar até aqui deve ter percebido que existem nessa região inúmeras histórias que podem ser garimpadas e lapidadas para oferecer ao leitor, ouvinte, espectador, material de primeira. Drama humano, meio ambiente, história, corrupção (opa!), política, tem de um tudo nessa região. Ou vocês não ficaram curiosos para saber quem eram os poderosos donos de terra das décadas de 40 e 50 que conseguiram canalizar os rios para tirá-los dos seus caminhos? E como fazer para viabilizar economicamente Jurerê Internacional e Daniela, só pra falar em dois dos loteamentos mais conhecidos, sem aquela reta sobre o mangue?

E a Casan, já conseguiu regular a estação de tratamento para só jogar no Papaquara o esgoto “tratado”? Ou continua merda pura?

No meio dessa história toda, em plena Estação Ecológica Carijós, tem uma área aterrada com o tal de “Stage Music Park”. Que até é bom que fique ali, longe das residências, porque o barulho é grande. Mas juram que vocês nunca quiseram saber quem autorizou quem a se instalar ali? E quando? E por que?

Que ninguém nos ouça, mas aquela função toda de tirar as comportas, usando máquinas pesadas, não afetou nadica de nada a estrutura das pontes? Aquele afundamento que ocorreu, há algum tempo, nas cabeceiras da pontes, não era sintoma de alguma coisa mais séria? Era só um pequeno ajustamento do terreno?

Ou seja, quem estuda um pouco sabe o que representa, para a vida marinha, um mangue. O que antigamente pensavam ser só um lamaçal que era preciso secar a qualquer custo, hoje se sabe que tem um valor enorme na preservação das espécies e na melhoria da pesca, entre outros benefícios. E, na Ilha, tem uma área enorme que, desde 1940, desperta interesses e tem sido mexida. Só contar, bem contada, essa história, já seria uma grande reportagem.

Divirtam-se e boa semana.

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Cesar Valente Escrito por:

Jornalista e designer gráfico catarinense, manezinho, setentão. Ex uma porção de coisas, mas sempre inventando moda: a mais nova é o mestrado em Jornalismo na UFSC.