Jornalista do serviço público, esse desconhecido

Numa data qualquer, perdida num passado relativamente remoto, o governo do estado de Santa Catarina fez um grande encontro de jornalistas do serviço público em Lages. Metido que sou e ex-jornalista do serviço público que fui, mesmo sem ter sido convidado resolvi reunir duas ou três coisas que sei e que gostaria de dizer aos colegas e publiquei na época, como uma espécie de carta aberta. E republico agora porque acredito que os problemas continuem existindo.

Taí o discurso que escrevi em 2011, para ler no tal congresso para o qual não fui convidado (imagino que, depois de ler, os organizadores devem ter ficado muito aliviados, com o acerto da decisão que tomaram):

Caros colegas, jornalistas do serviço público:

Em primeiro lugar, quero saudar vossa coragem em assumir uma das mais árduas tarefas do amplo espectro de atividades que um jornalista pode exercer. A assessoria de imprensa, nos diversos órgãos do governo é em geral mal compreendida pelos empregadores e pelos clientes e não raro o próprio profissional acaba sem saber direito qual o seu papel.

Por isso, encontros como este são importantes, desde que permitam uma real troca de experiências e o esclarecimento de dúvidas técnicas, profissionais e políticas. Espero que a presença de um palestrante “motivacional” de renome não acabe sendo considerada, pelos organizadores, como o “ponto alto” do encontro e tomando espaço do que realmente vocês precisam, que é conversa séria e diálogo franco.

A partir do estudo da comunicação institucional e da vivência em funções gratificadas nos governos federal e estadual, ouso relacionar algumas idéias que considero importante discutir, dentro do espírito de compartilhar as preocupações.

1. Os riscos da militância

O maior problema, dentro de qualquer governo, é justamente aquele motor que serviu para colocá-lo no poder: o ímpeto da militância, que contamina os processos administrativos, quando cabos eleitorais são premiados com funções de chefia. Diretores e gerentes, nas secretarias e empresas do governo, têm funções técnicas bem definidas.

Mas, a cada novo governo, o pessoal chega com o entusiasmo de quem venceu uma batalha, tomando conta do butim como conquistadores espanhóis no novo mundo e fazendo, pelo caminho, vítimas entre os nativos incultos (os servidores efetivos que, por falar nisso vêem o mesmo filme a cada troca de comando). Na cegueira do militante travestido de servidor público, o “espaço” é político e ele está ali a serviço do partido, ou do grupo de seu padrinho.

Nesse ambiente, é difícil conversar sobre cobertura noticiosa, estratégias de comunicação, aproximação com os veículos e geração de notícias. Não raro os veículos ganham carimbo de “contra” ou “a favor”, os profissionais são rotulados e tudo se resume a “prestigiar quem é nosso e tratar os outros a pão e água”.

Comunicação interna, por exemplo, que é uma função importante em qualquer assessoria de imprensa, não é bem vista pelas chefias, porque “desvia” o assessor de sua “atividade principal”: plantar notinhas nas colunas, começar matérias citando o chefe e sempre enviar fotos do chefe para os jornais. Afinal, o objetivo míope desse pessoal é usar a função apenas como um trampolim eleitoral, sem dar muita bola para a necessidade de que o governo funcione bem, o que, naturalmente, facilitaria o “bom” noticiário.

2. O confronto desigual

Muitos políticos têm os jornalistas em péssima conta. Talvez porque, ao longo da carreira, tenham conhecido muitos picaretas, gente sem estofo que se vende por dois tostões, tendem a pensar que somos todos iguais. E embora tenham um comportamente um pouco mais condescendente com os “nossos” jornalistas (aqueles que eles empregam ou para quem conseguem funções de confiança), ouvem com mais atenção outros assessores.

Esse desnível, que muitas vezes leva à exclusão do assessor de imprensa de reuniões importantes ou a desconsideração de suas opiniões, é mortal. Tanto na iniciativa privada quanto no serviço público, o assessor de imprensa não pode ficar num nível subalterno, conhecendo as decisões por terceiros, sem poder influir ou contribuir. Depois sofre pra divulgar um prato feito que foi servido com ingredientes indigestos ou mal cozidos, que poderia ter sido corrigido na fonte, se o jornalista estivesse presente no momento de sua elaboração.

3. O fascínio do “jornalista celebridade”

A assessoria de imprensa é uma função gerencial de largo espectro, que exige conhecimento técnico específico. Mas ao escolher seus assessores, muitos políticos não procuram qualificação profissional. Procuram “nome”.

Nem sempre dão-se conta que o “nome” do profissional está indissoluvelmente ligado ao veículo que lhe dá visibilidade. E, os que percebem isso, tentam fazer a dobradinha imoral e aética, do duplo emprego, num veículo e no governo.

Há ainda aqueles que misturam as frequencias e embaralham as idéias: acham que é sempre bom ter na assessoria um rostinho bonito, conhecido da TV. A profissional, se competente, acaba se sentindo mal com o tom das conversas de corredor. Se incompetente, nem nota e acha o máximo circular com “as autoridades”.

4. Tem gente séria? Tem.

Uma das poucas coisas que acho que aprendi, ao longo de mais de 30 anos de profissão, é que existe gente séria, competente e dedicada em todas as áreas de atuação. Nem sempre estão prestigiados, nem sempre ocupam cargos de destaque e nem sempre conseguem durar muito tempo, mas existem. E são eles que podem fazer com que uma máquina estatal ganhe velocidade e até, como seria o desejado, levante vôo, bem azeitada e eficiente.

Da mesma forma, mesmo entre aqueles que são escolhidos para ocupar funções comissionadas, porque tiveram algum tipo de militância política, se encontra gente preocupada com o funcionamento da “máquina” em favor do eleitor/contribuinte. São mais inteligentes, vêem um pouco adiante da urna e sabem que nenhum projeto de poder consegue sobreviver apenas de factóides, promessas e conversa mole. É preciso ter resultados, poder comparar desempenhos.

5. A notícia, essa desconhecida

E é fundamental que o eleitor/contribuinte sinta os efeitos do que está mudando. As “boas notícias” têm que ser virais, devem ganhar as ruas por sua própria força, se espalhar nas conversas ao pé do ouvido, ganhar velocidade nas tais “redes sociais”, que podem ou não ter a intermediação da internet. Uma coisa assim poderosa só pode ser formatada numa assessoria de imprensa competente, a partir de uma matéria prima de qualidade. Se tem notícia de verdade, fica fácil fazer com que ela circule.

O grande problema é que poucos sabem o que, de fato, é notícia. E mesmo que muitos assessores de imprensa reconheçam uma notícia boa de divulgar, esbarram na miopia militante ou na ignorância propriamente dita de chefias de olho fixo na urna. Como não vêem nada além disso e nunca estudaram muito, não desenvolveram uma saudável curiosidade sobre a amplitude da conjuntura econômica, social e política, e aí tendem a desqualificar a assessoria profissional. E a supervalorizar a assessoria bajulatória.

Conclusão

Essas foram algumas idéias alinhavadas meio às pressas hoje de manhã, que poderiam render muito mais. Mas acho que são suficientes para provocar algumas discussões e ajudar àqueles e àquelas que levam a profissão a sério, a identificar melhor os obstáculos e imaginar saídas.

É por causa desse conjunto de fatores (e de outros que não listei) que disse, no início, que queria “saudar vossa coragem, em assumir uma das mais árduas tarefas do amplo espectro de atividades que um jornalista pode exercer”.

E quando os chefes, incomodados com crítica, veneno ou maldade de alguma coluna de opinião ficarem enchendo o saco de vocês, lembrem-se que, de todos os problemas e complicações dessa função, espinafrar o colunista no telefone ou dar bronca nesse irresponsável no tuíter, é a atividade com menor risco e dificuldade. E até alguma chance de acabar sendo prazerosa.

Boa sorte, bom encontro e boa semana.


Ilustração de Gerd Altmann e fotos fornecidas por pixabay.com

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Cesar Valente Escrito por:

Jornalista e designer gráfico catarinense, manezinho, setentão. Ex uma porção de coisas, mas sempre inventando moda: a mais nova é o mestrado em Jornalismo na UFSC.