A Grande Reforma de 1972

Mudanças tecnológicas no jornal catarinense O Estado


Introdução

Em 1972 o jornal O Estado, de Florianópolis reformulou radicalmente sua operação. Mudou de um sobrado acanhado para um galpão espaçoso, instalou novos sistemas de composição e impressão e ampliou o seu quadro de funcionários, em especial o número de jornalistas. E não só: passou a circular em todo o estado. Foram mudanças surpreendentes porque não houve alteração de propriedade e não havia qualquer planejamento empresarial prevendo uma “modernização” com essa extensão ou profundidade. Os principais editores faziam parte do jornal antes das mudanças e continuaram no “novo” jornal, o que demonstra que não ocorreu ali, como em tantos outros jornais, o tipo de reforma que acontece quando da posse de um novo quadro dirigente. 

Para conhecer em maior detalhe esses eventos, este trabalho propõe: fazer uma contextualização histórica evidenciando as principais mudanças ocorridas e destacar resultados, com reflexões preliminares acerca deles, apontando para questões de pesquisa futura na continuidade deste estudo.

Após a necessária revisão bibliográfica, foram feitas entrevistas abertas com profissionais que acompanharam de perto esse período e uma análise documental, principalmente revisando a coleção de exemplares do jornal da época, para verificar e confirmar informações relevantes. 

“Conforme explica a própria designação, a análise documental compreende a identificação, a verificação e a apreciação de documentos para determinado fim” (MOREIRA, 2015, p. 271). No caso deste estudo, entendemos que esse seria o método mais adequado para atender a duas finalidades principais: a) visualizar a aparência do jornal antes e depois da mudança do processo de impressão, passo fundamental para identificar em que medida expressões como “mal impresso” ou “melhor impresso” são utilizadas com propriedade; b) buscar confirmação das datas e fatos referidos pelos entrevistados.

A história, nos ensina Marialva Barbosa (2009, p. 24), “é sempre interpretação feita a partir de quem, do presente, olha o passado. A história é sempre narrativa, algo que foi narrado no passado e que agora podemos re-narrar”. E, como ela situa, “a categoria experiência aparece como central na definição de narrativa” (BARBOSA, 2004, p. 2). Vivi o processo que relato neste artigo, por ter atuado no jornal O Estado nesse período, primeiro como colaborador e depois como profissional contratado. Publiquei crônicas semanais entre 1970 e 1972 e depois, já no “novo jornal O Estado”, fui contratado como redator do Caderno 2, suplemento diário de cultura e variedades, de 1972 a 1973. Entre outras funções exerci o cargo de editor geral de 1987 a 1989.

Nada começa hoje. A mesma lógica processual que governa a reflexão em torno das práticas comunicacionais governa também o olhar histórico. O momento atual é resultado de um jogo acumulativo dos processos que começaram muito antes de nós.

 (BARBOSA, 2012, p. 148)

Contextualização histórica

O jornal O Estado, de Florianópolis, SC, foi fundado em 1915. Circulou como diário até maio de 2007 e semanário a partir daí até o fechamento, em dezembro de 2008. Durante muito tempo foi o jornal de maior prestígio na capital. Na literatura encontramos várias citações sobre o período “áureo” do jornal: “É na década de 70 que o mais antigo registrará fase áurea, em termos de tiragem, circulação e prestígio em todo o estado” (PEREIRA, 1992, p. 119).

Até a década de 1960 o jornal atuava como portavoz de um partido político ou de uma corrente política. Seu proprietário a partir da década de 1940, Aderbal Ramos da Silva, era político influente, líder do Partido Social Democrata (PSD) e foi governador do estado (em 1947). Ele também era proprietário da rádio Guarujá, que seguia a linha do PSD. Até sua morte, em 1985, manteve uma rotina de acompanhamento do jornal, como relata seu biógrafo (e também colunista político e editorialista de O Estado) Luiz Henrique Tancredo:

Entre eles (os hábitos), incluía-se uma passagem diária, geralmente ao cair da tarde, pelo jornal O Estado. Gostava de conversar com a equipe dirigente e, em especial, com os colunistas políticos. Ia sempre em busca de novidades, mas muitas vezes ele é quem as levava. 

(TANCREDO, 2011, p. 377)

A UDN (União Democrática Nacional), liderada pela família Bornhausen, também tinha o seu jornalA Gazeta. Irineu Bornhausen foi governador do estado na década de 50 e embora não fosse acionista do jornal, era proprietário da emissora de rádio do partido, a rádio Diário da Manhã. O atrelamento partidário dos meios de comunicação era uma coisa antiga e incorporada à cultura local.

Na década de 60 o jornal O Estado começou a afastar-se do papel de panfleto político de um partido, aparentemente em busca de um jornalismo mais moderno. Não só porque os partidos políticos foram extintos, por um dos atos institucionais da ditadura militar, mas principalmente pela chegada, à direção, de jovens bacharéis, na equipe montada pelo novo diretor do jornal, José Matusalém Comelli, genro do Doutor Deba, como era conhecido o proprietário, Aderbal Ramos da Silva. Alguns desses colaboradores eram muito talentosos, a ponto de se transformarem em nomes respeitados no jornalismo e nas letras. O ideal jornalístico que os motivava e orientava era o Jornal do Brasil, que então estava em seu auge de popularidade, depois de uma bem sucedida reforma gráfica. E, não por acaso, Marcílio Medeiros Filho, o editor-chefe de O Estado foi, por alguns anos, correspondente do JB em Santa Catarina. Mas as limitações técnicas tornavam a imitação muito difícil.

Edição de 23 de junho de 1970. Títulos feitos com tipos móveis de metal, compostos manualmente, textos compostos “a quente”, em linotipo e impresso em rotoplana.

Em meados dos anos 60, o Dr. Aderbal pediu-me para cuidar também do jornal. Ao longo do processo de interação em O Estado começamos a ensaiar mudanças, em sua sede alugada, na rua Conselheiro Mafra. As perspectivas aumentaram no início dos anos 70 com a construção de nova sede e o avanço tecnológico. A aquisição de um moderno sistema de composição e de um equipamento de offset deu o necessário start ao crescimento vertiginoso, com novos profissionais oriundos de outros estados e a aquisição de agências de notícias nacionais e internacionais. Meus compromissos com outras empresas obrigaram-me a constituir uma equipe de gestores altamente confiável. Em menos de seis anos, o jornal transformou-se em um dos mais importantes veículos do Sul do Brasil.

(COMELLI, 2015, p.182)

Ainda que os Ramos estivessem ativamente participando da Arena (o partido de suporte ao governo militar), a censura aos meios de comunicação também fez vítimas em O Estado. Moacir Pereira conta que O Estado “foi o jornal mais censurado em Santa Catarina”. Por motivos políticos os principais editores do jornal na década de 60 foram processados ou presos: Marcílio Medeiros Filho, Paulo da Costa Ramos e Sérgio da Costa Ramos (PEREIRA, 1992, p.4). Sérgio ficou preso em 1968 por vários meses porque escrevera uma crônica bem-humorada sobre a visita do general-presidente Artur da Costa e Silva a Florianópolis.

Esse enfraquecimento do jornalismo atrelado a grupos politicos se dá não só porque o governo militar extinguiu os partidos políticos (e os Ramos e os Bornhausen reuniram-se na Arena, o partido governista, reduzindo temporariamente os atritos), mas porque a cidade e o estado começavam a viver um ambiente de renovação. 

Em todo caso, o jornal O Estado que o leitor recebia em casa ou comprava na banca, em 1970, era uma espécie de compêndio do que, em arte gráfica, se considera mal impresso. As fotos, em alguns casos, eram irreconhecíveis (donde a importância da legenda) e mesmo os textos tinham falhas no entintamento. A tinta ficava nas mãos do leitor com facilidade. E a composição em metal não permitia flexibilidade no desenho das páginas.

Edição de 4 de abril de 1972.
Como mostrar a bola, se a impressão é ruim? A saída foi fazer um círculo, no clichê, para ajudar o leitor a descobrir onde ela estava.
A montagem das páginas com títulos e textos em metal não permitia muita flexibilidade e às vezes uma distração na colocação de títulos de matérias diferentes numa mesma linha produzia coisas estranhas.

Nessa época, todos os jornais catarinenses eram produzidos de forma semelhante. Mas os jornais do centro do país que chegavam à cidade tinham melhores sistemas de impressão. A Folha de S.Paulo foi o primeiro jornal brasileiro a adquirir uma impressora offset rotativa de grande porte, usando-a a partir de 1968 (FREIRE, 2009, p. 7). O que o Jornal de Santa Catarina (JSC), publicado em Blumenau colocou nas bancas, em setembro de 1972, portanto, era um produto inovador, que superava a concorrência local já pela aparência e nitidez das fotos.

Offset produz uma imagem de melhor qualidade, porque consegue pontos muito menores e, portanto, com maior resolução do que na impressão tipográfica. As fotos, especialmente, ganham definição; os anunciantes, em particular, gostavam do offset.

(GENESOVE, 1999, p. 3, tradução do autor)

Enquanto em Blumenau se planejava a criação desse novo jornal, com circulação estadual, O Estado continuava no sobrado da rua Conselheiro Mafra onde funcionavam, no térreo, as oficinas e, no andar superior, a redação. Santa Catarina não tinha curso de Jornalismo (só criado em 1979) e repórteres e redatores normalmente tinham outro emprego para complementar a renda. Como Florianópolis é capital de estado, em geral o segundo emprego era em alguma repartição pública. O que era usado pelos concorrentes, como Flávio de Almeida Coelho, um dos fundadores doJornal de Santa Catarina (JSC), para alfinetar uma provável falta de independência dos jornais da capital.

Era uma época que “Santa Catarina não tinha jornal independente”, destaca Flávio de Almeida Coelho. “Boa parte dos jornalistas não vivia do jornalismo, vivia de outros empregos, principalmente no Governo do Estado. Como então a imprensa podia ser independente?”, questiona o empresário.

(FERNANDES, 2005, p. 59)

A rotina diária de produção do jornal, até o dia 11 de maio de 1972, foi basicamente a mesma por décadas. Os textos, em boa parte, eram escritos a mão, nem sempre com caligrafias facilmente legíveis. As notícias nacionais mais importantes, recortadas dos jornais do Rio e São Paulo que chegavam via aérea. Ou anotadas dos noticiários de rádio. Os repórteres locais nem sempre conseguiam redigir satisfatoriamente seus relatos, donde a importância de contar com redatores que pudessem transformar aquelas informações num texto que fizesse sentido.

O jornalista Sérgio da Costa Ramos (filho de Rubens de Arruda Ramos que dirigiu o jornal na década de 1950) contou, em artigo/crônica publicada no livro comemorativo do centenário de fundação do jornal (SARDÁ, MEDAGLIA, 2015, p. 409), um pouco do que viu e viveu:

Foi por esta época que, depois de tantas facetas pregadas pelo mau tempo, o jornal contratou o seu primeiro repórter “full-time”: Rodolfo Eduardo Sullivan, que além de míope dos dois olhos – usava um poderoso telescópio fundo de garrafa – não possuía exatamente o ágil perfil de um trepidante da notícia: pesava 150 quilos. Mas, surpresa: trazia no mínimo cinco boas matérias por dia, para satisfação do editor e pânico dos copidesques. Seus textos, rascunhos ricos em informação, eram redigidos num difuso discurso mais indireto do que o Hino Nacional ou a primeira estrofe do poema épico “Os Lusíadas”:

– Traduz aí! – comandava o editor Marcílio Medeiros Filho aos redatores (Sérgio Lopes, Paulo e Sérgio da Costa Ramos, Raul Caldas Filho, Luiz Henrique Tancredo, Aldo Granjeiro, Laudelino Sardá), entre outros ‘voluntários’ incumbidos da penosa missão.

(RAMOS, 2015, p. 409)

O material, literalmente, era baixado para as oficinas (situadas no térreo) e entregue às mãos experientes dos linotipistas, exímios não apenas na operação daquela máquina que era uma verdadeira maravilha, pela engenhosidade e pela forma como resolvia o complicado problema tecnológico de criar linhas de texto fundindo na hora o metal, mas também em decifrar os garranchos dos textos manuscritos. Nem todos utilizavam as máquinas de escrever e nem todos tinham boa caligrafia.

Enquanto as linotipos cuidavam de transformar os textos até corpo 12 em matrizes para a impressão, os títulos e demais textos maiores (corpo 14 em diante) eram compostos como no tempo de Gutemberg: caracter por caracter, catados manualmente nas caixas de tipos.

Fotos e ilustrações precisavam passar por um processo fotoquímico para ganhar relevo numa chapa de metal (o clichê) e serem adicionados às páginas.

A impressão era feita por uma máquina que Osmar Schlindwein chama de “a avó da rotativa offset”. Era da família das rotativas: usava bobinas de papel, para impressão contínua. Mas o sistema era tipográfico: a matriz recebia tinta e imprimia diretamente o papel. O desgaste das peças, nas décadas de uso, foram criando áreas em que a tinta ficava mais fraca e o resultado era um jornal cujos problemas de impressão eram bem visíveis a cada exemplar e a cada edição. 

Em 1970, quando comecei a colaborar com o caderno dominical de cultura, com crônicas semanais, O Estado já era o jornal de maior prestígio na capital, mas ainda era um pequeno jornal, mal impresso.

Minha primeira missão ao chegar à porta de O Estado era galgar uma íngreme escadaria de pagador de promessas. Nunca contei, mas eram mais de 30 degraus, único acesso à redação encarapitada no sobradão da Conselheiro Mafra, número 160. Rangia ao peso dos compulsórios passageiros e ao ataque dos cupins contra os barrotes já semidevorados. A redação dispunha de quatro mesas e três máquinas de escrever, posto que a quarta era mais uma peça de museu do que um exemplar das outras Remington de guerra.

(RAMOS, 2015, p. 408)

Por isso, a decisão de modernizar-se fazia todo sentido: só seria possível concorrer com o JSC (ou mesmo manter sua posição de jornal de prestígio) se fosse possível imprimir mais exemplares, mais rapidamente e com melhor qualidade.

Corria o ano de 1972 e O Estado, principal jornal de Florianópolis, não passava de um modesto produto midiático sofrivelmente impresso e tocado por uma plêiade de jovens – nós – esforçados, porém amadores – (ou semi) – que procurávamos denodadamente elaborar uma edição na medida do possível aceitável pela sociedade florianopolitana. Que, diga-se, na verdade, nunca deixou de ser-lhe fiel.

(MEDEIROS FILHO, 2021, p. 206) 

A transição de “um diário essencialmente político para outro de informação geral” foi notada pela pesquisadora Leani Budde (2013, p. 72), com a ressalva de que, embora o proselitismo político partidário não fosse mais o foco, “continuava atrelado aos interesses políticos e econômicos de seu proprietário”.

gatilho para a mudança

Sediada em Blumenau, a TV Coligadas trouxe de Porto Alegre o jornalista (e professor na Famecos/PUC-RS) Nestor Fedrizzi para dirigir o departamento de jornalismo. Ele seria uma peça-chave na montagem das equipes que a seguir criariam o Jornal de Santa Catarina (JSC). A visão que Wilson de Freitas Melro, Caetano Deecke de Figueiredo e Flávio de Almeida Coelho, proprietários da TV Coligadas (única afiliada da Rede Globo em SC) tinham do cenário estadual era de que o jornal O Estado não era um concorrente a ser considerado:

Com o sucesso da TV Coligadas, nós concluímos que estava aberto o mercado da mídia impressa e que Santa Catarina precisava de um jornal profissional. Santa Catarina tinha o jornal O Estado, de Florianópolis, que era propriedade do ex-governador Aderbal Ramos da Silva, e estava sendo dirigido pelo genro dele, José Matusalém Comelli. Que era um jornal tipo chapa-branca, porque o Aderbal era um cacique político do PSD, depois da Arena. […] Outra, os jornalistas, praticamente, no Estado, eram assessores de imprensa de algum órgão do Estado, então era um jornal absolutamente chapa-branca. Em Joinville tinha o jornal A Notícia, era a mesma coisa. Aqui, tinha o A Nação, que era do Diários Associados, também já estava pela boa, porque o Diários Associados já estava quebrando. […] Então estava aí um campo aberto.

(COELHO, 2009, p. 3)

Para completar esse panorama, em 1970 o jornal de maior circulação em Santa Catarina era o Correio do Povo, editado em Porto Alegre, que destinava um reparte de cerca de 15 mil exemplares para assinantes de todo o estado (PEREIRA 1992, p. 68). 

Em 10 de dezembro de 1970 torna-se público o projeto do grupo que dirigia a TV Coligadas, para criação de um jornal de circulação estadual, impresso em offset em Blumenau. Fedrizzi, que tinha começado a montar uma rede estadual de correspondentes para a TV, preparou uma estrutura com foco na profissionalização. Ao atrair profissionais de Porto Alegre o jornal blumenauense dava uma contribuição importante para mudanças também no cenário dos recursos humanos.

A equipe de jornalistas gaúchos, em Blumenau, para o lançamento do Jornal de Santa Catarina. Fedrizzi é o terceiro a partir da esquerda. Alguns deles depois iriam trabalhar em O Estado.

Uma equipe de 40 jornalistas deu comando à redação do Jornal de Santa Catarina, num montante de 200 funcionários. Cerca de 20 profissionais foram trazidos de Porto Alegre, […]. Com eles, vieram técnicos em fotografia, fotógrafos, gráficos e operadores de rotativa.

(WEISS e ALMEIDA, 2010, p. 4)

Naturalmente a sucursal em Florianópolis, capital do estado, era a mais importante e merecedora das maiores atenções.

Fomos buscar o que havia de melhor em equipamento. Por exemplo, eu fui e comprei dos Estados Unidos um equipamento de telefoto, que ninguém tinha aqui. Então, a nossa sucursal de Florianópolis […] fazia com que o fato que acontecia lá às 4h da tarde eu tivesse a foto aqui às 4h15min. Vinha mais ou menos como um fax. Então eu competia em Florianópolis com o jornal O Estado como se fosse um jornal local.

(COELHO, 2009, p. 5)

Tudo indica que o lançamento do jornal de Blumenau mexeu com os brios dos dirigentes de O Estado, que se lançaram numa corrida para recuperar o tempo perdido e também disputar o mercado estadual. Com a boa repercussão do lançamento do JSC, em setembro de 1971, ficou claro que a única opção seria modernizar-se. Não agir poderia significar o fim precoce do veículo.

Edição de 22 de setembro de 1971, primeiro número do JSC, registrando a inauguração ocorrida na ´véspera.

A sorte como aliada

Sem planejamento prévio (ainda que alguma mudança estivesse nos planos mais ou menos genéricos), sem que tivessem sido feitos os demorados trâmites de compra e importação de equipamentos o jornal O Estado conseguiu lançar sua edição offset em maio de 1972, com equipamentos novos, apenas oito meses depois da criação do JSC. Uma série de eventos fortuitos permitiu esse milagre. O primeiro deles: havia, já em portos brasileiros, desembaraçado da alfândega, um parque gráfico completo, importado por um empresário paranaense que pretendia fazer um jornal, mas desistira da empreitada e queria vendê-lo (VALENTE, 2005, p 74, artigo transcrito aqui, nesse post antigo). 

O paranaense, dono de cinemas, relacionava-se com o catarinense Jorge Daux, também dono de cinemas. Daux, ao saber da história, lembrou-se do amigo José Matusalém Comelli, diretor de O Estado. E fez a ponte entre os dois. Por isso foi possível, em menos de um ano, trazer para Florianópolis e instalar uma rotativa offset e o laboratório fotográfico para produção de fotolitos e chapas de impressão. O sistema de composição foi adquirido da IBM brasileira.

Tratou-se de um evento marcante não só para a história da empresa, como para o jornalismo catarinense.

1972 foi o início da transformação de O Estado, que ganha uma nova e ampla sede no alto da rua Felipe Schmidt, onde uma moderna impressora offset aposenta a velha e surrada rotoplana, enquanto as linotipos cedem espaço à composição a frio, cuja tecnologia constituía o primeiro passo ao sistema digital. O processo de modernização do jornal fortalece-se com a contratação de profissionais formados em jornalismo.

(SARDÁ, 2015, p. 32)

Essa revolução permitiu que o jornal, em pouco tempo, fosse considerado “o periódico mais importante do período em Santa Catarina” (BUDDE, 2013, p. 56).

Garantidos os equipamentos principais, 1972 iniciou com o projeto do novo O Estado sendo tocado com grande velocidade. Afinal, se aproximava a melhor data para anunciar novidades: o aniversário do jornal, no dia 13 de maio.

Anúncio, em 19 de março de 1972, recrutando pessoal para o novo sistema de composição a frio.

O pessoal técnico começou a ser recrutado em 19 de março de 1972, quando já circulava a informação de que haveria um novo O Estado a partir de maio. Para a composição (a frio, em máquinas IBM) foram chamados basicamente datilógrafos. Apareceram centenas de candidatos e o resultado da seleção (feita por instrutores da IBM) foi anunciado em 12 de abril. Não é demais lembrar que a nova operação já estava sendo divulgada e iniciaria em apenas um mês. Para operar os demais setores e a rotativa, a seleção não foi pública, mas por experiência em gráficas. Além do treinamento oferecido por técnicos dos fabricantes, o jornal fez acordo com jornais de Novo Hamburgo (Grupo NH) e de Caxias do Sul (O Pioneiro), no Rio Grande do Sul, para que o pessoal passasse lá alguns dias acompanhando a produção em sistemas semelhantes ao que estava sendo instalado em Florianópolis.

Anúncio publicado em abril de 1972.

Rogério Junkes, primeiro colocado na seleção de pessoal para a composição, chefiou a pré-impressão por muitos anos, em entrevista ao autor, em julho de 2022, conta que o início foi difícil: “começamos do zero, ninguém tinha experiência prévia naquilo que estavamos fazendo. Os instrutores ficaram um tempo, mas depois tivemos que nos virar sozinhos”. Começar do zero é imagem recorrente nos relatos, que a todo momento enfatizam as dificuldades enfrentadas na transição.

A equipe que operava os equipamentos do “velho jornal”, na prática, ficou sem função no novo jornal. Mas não houve demissão em massa. Schlindwein, que era diretor à época, conta que o jornal se preocupou em acompanhar cada caso e encontrar, quando possível, recolocação no mercado. Foi o caso de alguns linotipistas, que passaram a atuar nas linotipos ainda em funcionamento na Imprensa Oficial do Estado e na Imprensa da Universidade Federal de Santa Catarina. Alguns funcionários foram para o novo jornal, mantendo o vínculo empregatício, mas sem qualquer função relacionada com a produção gráfica.

O outro lance de sorte: boa parte dos jornalistas que Fedrizzi trouxe do RS para criar o JSC, não se adaptou a Blumenau e a seus costumes e planejava sair. Vários acabaram sendo contratados pelo O Estado, para reforçar a equipe local.

Na redação, portanto, não houve necessidade de começar do zero. A equipe foi composta por jornalistas já atuavam no jornal, por outros que já moravam na cidade e tinham alguma ligação com o jornal (no meu caso era cronista, com colaborações semanais publicadas desde 1970) e os jornalistas do RS que fizeram parte da equipe que lançou o JSC. Estes complementaram o time e assumiram as principais editorias (geral, nacional, internacional e esportes). Não só tinham experiência em jornalismo, mas também em usar recursos como telex e teletipo e na rotina de produzir jornais diagramados. Além de ter vivido, há pouco tempo, a aventura de lançar um novo jornal.

Edição de 14 de maio de 1972. O governador, oito meses depois, volta a acionar uma rotativa off-set em Santa Catarina. Com ele, o proprietário do jornal, ex-governador Aderbal Ramos da Silva.

Assim, em pouquíssimo tempo, aquele pequeno jornal mal impresso surgiu repaginado, bem impresso e com mais conteúdo. 

O jornal deixara o velho pardieiro da Conselheiro Mafra, transferindo-se para o alto da Felipe Schmidt. Máquinas novas, impressora offset zero quilômetro, mobiliário renovado, tudo, enfim, era exatamente o oposto do que se via na antiga sede. Isto para não falar na maravilha tecnológica do telex, através do qual as notícias enviadas pelas agências chegavam fresquinhas numa fita picotada, que o aparelho se encarregava de transpor para o vocabulário do nosso idioma. Os olhos de todos nós que formavam a família do jornal brilhavam ao ver aquele deslumbramento que colocava em nossas mãos o noticiário sempre atualizado de todo o Brasil e do exterior.

(TANCREDO, 2021, p.196)

As etapas de produção

Para facilitar a compreensão dos processos envolvidos, esquematizei as áreas relacionadas diretamente com a confecção do jornal impresso da seguinte maneira:

a) Redação: o que hoje seria conhecido como produção de conteúdo. É o espaço onde se realiza o trabalho de repórteres, redatores, fotógrafos e ilustradores. Quando recebe as marcações adequadas indicando em que parte do jornal será utilizado, o material passa à etapa seguinte.

Sala de redação, em 1973, na nova sede, da rua Felipe Schmidt. Foto do arquivo do jornal, provavelmente de Orestes Araújo.

b) Pré-impressão: textos e fotos são tratados e preparados em equipamentos e rotinas separadas até serem reunidos na montagem das páginas. O objetivo é obter uma matriz com a página pronta para imprimir.

c) Impressão: como o nome diz, trata-se de colocar a matriz, com a página, em condições de ser montada numa impressora e realizar o processo de transferir textos e imagens para o papel. Os exemplares impressos e devidamente encadernados e embalados são então entregues à distribuição.

d) Distribuição: o processo de fazer o jornal chegar ao leitor. Seja colocando em pontos de venda ou entregando no endereço dos assinantes.

A circulação estadual adicionou novos desafios ao jornal: além de fazer com que os exemplares chegassem a todas as regiões, era necessário ter algumas sucursais que fornecessem noticiário local, para ampliar a cobertura.

Em 1972, no jornal O Estado, ocorreram mudanças em todos essas etapas. Algumas, como veremos, mais radicais. Mas nenhum setor atuava, depois de 13 de maio, da mesma forma que antes. 

O novo jornal

Com o sistema de impressão (e marca e modelo do equipamento) definido pelo acaso, restava a escolha do sistema de composição. O jornal adquiriu o conjunto da IBM MT72, composto basicamente por máquinas de escrever elétricas, que usavam esferas intercambiáveis para a impressão do texto no papel. O texto era gravado em fitas magnéticas em máquinas mais simples e essa fita era lida em uma máquina com recursos mais sofisticados, que imprimia o texto em papel. O senão era o fato de, a cada mudança de fonte ou estilo (bold, itálico, com serifa, sem serifa, etc) ser necessário trocar manualmente a esfera. Em comparação com as linotipos, contudo, era um avanço.

Edição de 6 de setembro de 1972. Além dos novos sistemas de composição e impressão, a assinatura de agências de notícias internacionais permitia, por exemplo, manchetes como essa.

Para os títulos, a escolha foi uma máquina Morisawa. Uma matriz com os caracteres da fonte era movimentada manualmente e as letras fotografadas uma a uma numa tira de papel fotográfico.

Uma grande câmera de artes gráficas (ou de reprodução) era utilizada para copiar as fotos e ilustrações inserindo, se necessário, a retícula que permitiria a simulação dos tons contínuos nas fotos e ampliando ou reduzindo os originais conforme o planejamento de cada página. Os textos, os títulos e as fotos e ilustrações (tudo em papel, comum ou fotográfico) eram então montados na página usando um adesivo de parafina. E a página, pronta, voltava à câmara fotográfica para a geração do fotolito. Basicamente um negativo transparente da página, que seria utilizado para a sensibilização da chapa que seria colocada na impressora. Nada disso era feito dessa forma na sede da Conselheiro Mafra. 

Na mudança do “hot metal” para a fotocomposição analógica […] Novos conhecimentos sobre eletrônica e óptica eram necessários. Não apenas as habilidades genéricas de mecânica eram menos valiosas, mas o conhecimento específico das complexidades das máquinas que fundiam o metal também perdeu seu valor.

(TRIPSAS, 1996, p. 96, tradução do autor)

Considerações finais

Mary Tripsas (1996) mede, de forma abrangente, o impacto da implantação do offset e da fotocomposição nos jornais. Apropriadamente, ela dá ao trabalho um título de impacto dramático: “Sobrevivendo a uma mudança tecnológica radical: um estudo empírico da indústria gráfica”. David Genesove (1999) detalhou, no artigo “A adoção das impressoras offset pelos jornais diários nos Estados Unidos”, como se deu esse movimento e o que levou, predominantemente, a empresa a tomar a decisão de investir num novo sistema. Mas, no jornal O Estado de Florianópolis, para os jornalistas, que usavam máquinas de escrever mecânicas para redigir suas matérias no sobrado da Conselheiro Mafra e continuaram usando máquinas de escrever mecânicas na nova sede da Felipe Schmidt não houve, nessa ocasião, uma mudança tecnológica radical. Não por acaso, em O Estado de maio de 1972 a maioria dos sobreviventes, que veio da antiga sede, era jornalista.

Ainda que, nas bancas, por causa da mudança tecnológica radical, o jornal O Estado depois de 13 de maio de 1972 pareça muito diferente do mesmo jornal do início do mesmo ano, o núcleo dirigente do jornal, que define e decide sobre a política editorial, não mudou. O proprietário, os diretores, o editorialista, o editor-chefe e o responsável pela principal coluna política no novo jornal são os mesmos. O que levanta uma questão importante, a ser estudada: que reflexos tiveram as mudanças na qualidade do conteúdo editorial?

O jornal anterior era melhor do que o impresso em offset? Pode-se supor, preliminarmente, que a decisão de contratar mais jornalistas, entre os quais profissionais com perfil diferente da equipe que já trabalhava ali, tenha provocado alguma mudança na linha editorial. De forma intencional ou acidental. Mas é relevante, para o jornalismo, entender melhor se e como as mudanças tecnológicas afetam o conteúdo.

O conceito de qualidade é problemático quando aplicado ao jornalismo porque é quase impossível relacionar quais elementos compõem o conceito. Como resultado, qualidade tende a ser definida não pela sua presença, mas pela sua falta e os observadores ficam na posição de dizer “não podemos definir a boa qualidade, mas nós reconhecemos a má qualidade quando a vemos”.

(PICARD, 2000, p. 97, tradução do autor)

Janara Nicoletti (2019), em sua tese “Reflexos da precarização do trabalho dos jornalistas sobre a qualidade da informação: proposta de um modelo de análise” relaciona o depauperamento das condições de trabalho à perda de qualidade jornalística. Talvez ali se encontrem ferramentas que permitam medir o movimento oposto: o reflexo na qualidade do produto quando ocorrem a melhoria das condições de trabalho e a ampliação do número de profissionais envolvidos. 

“Entende-se que precarização e queda da qualidade caminham lado a lado na indústria jornalística”, afirma Nicoletti (2019, p. 15). Nos meses que precederam a “Grande Reforma de 1972” uma equipe pequena, dependendo de equipamentos antigos que funcionavam mal, num ambiente de trabalho acanhado, é ameaçada pelo surgimento de um concorrente poderoso. E, em poucos meses a equipe de profissionais, ampliada com colegas mais experientes (ainda que jovens) trabalha em novo ambiente, certamente com outro ânimo, vê-se estimulada pela possibilidade de fazer frente, em condições semelhantes, à concorrência. Qual a qualidade do jornal resultante desse conjunto de fatores? Embora não tenha sido o objetivo deste artigo, buscar a relação entre essas novas condições de trabalho e a qualidade do produto oferecido aos leitores é uma sequência, de certa forma óbvia, dessa história.

Edição de 11 de junho de 1972. A qualidade da impressão, sem dúvida, melhorou. Mas, e o conteúdo?

Referências

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  • Trabalho apresentado no GT História da Mídia Impressa, do XIV Encontro Nacional de História da Mídia, da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar), em agosto de 2023, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, RJ.

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Cesar Valente Escrito por:

Jornalista e designer gráfico catarinense, manezinho, setentão. Ex uma porção de coisas, mas sempre inventando moda: a mais nova é o mestrado em Jornalismo na UFSC.